A Águia e a Serpente

~ Singelas ousadias de pensador incipiente. Cá estou para realizar o meu ofício: pensar. Pensar com a Filosofia, com a Arte e com a Ciência. Suscitar acontecimentos.

A Águia e a Serpente

Arquivos de Categoria: Cineanálise

“Goodbye Dragon Inn”: o acontecimento e a fala além da fala

28 domingo jul 2013

Posted by Rico in Acontecimento, Cineanálise, Contemporaneidades, Deleuze

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Acontecimento, Ausência, Ming-liang, Sentido, Silêncio

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      Goodbye Dragon Inn é um filme que coloca o espetador diante das experiências do silêncio, da ausência e da solidão. E Tsai Ming-liang dará uma primazia tão grande a essas experiências que se verá obrigado a suspender elementos cinematográficos tradicionais, evocados por críticos e apreciadores da sétima arte como pilares mestres de todo cinema, de hoje e de amanhã. Mas não basta anunciar essa inconvencionalidade, é preciso mostrá-la. Eis o que não encontraremos, portanto, no filme de Ming-liang e que pode despertar a ira dos cinéfilos e críticos mais conservadores: 1) enredo/história (absolutamente nada nos é contado); 2) estrutura narrativa e diálogo (há apenas um quase diálogo, pois a dialética para sua realização não acontece, que surge após quarenta minutos de filme, e um diálogo de fato nos minutos finais, porém, destituído de importância narrativa); 3) roteiro (não há trajeto, caminho a ser percorrido).

      Com efeito, se não há enredo, narrativa e roteiro, então, não há filme propriamente dito. Em certo sentido, trata-se realmente de um “antifilme”. Mas seria demasiado fácil nos contentarmos com tal objeção. Há um porquê de Ming-liang abrir mão desses elementos. O que é Goodbye Dragon Inn? O resgate do sentido do acontecimento – ele é um acontecimento: o encerramento das atividades de um velho cinema. Trata-se, pois, de um acontecimento, como o acontecimento-cavalo de Raskólnikov, ou ainda o acontecimento-flor dos quadros de Séraphine de Senlis. E o acontecimento, ele mesmo, não é histórico, ele é uma espécie de “fulguração” que surge de dentro de uma certa névoa a-histórica, para falar à maneira de Nietzsche. O acontecimento não se confunde com a história, nada tem a ver com ela, de modo que Ming-liang tem necessidade de suspender a história como elemento cinematográfico, pois só assim ele pode nos colocar diante da nudez do acontecimento puro.

      E por que dispensar tanto a narrativa quanto o diálogo? Ora, para escapar à comodidade pueril dos filmes convencionais (e aqui não há distinção entre o cinema americano e o europeu) que se contentam em “falar sobre…”, isto é, em tagarelar. A tagarelice nos faz perder de vista o sentido do acontecimento. Falar sobre o silêncio, sobre a ausência, sobre a solidão ao invés de fazê-la falar por si mesma, isso não interessa a Ming-liang. É também uma fuga do cinema psicológico. Não há profundidade psicológica – o que pensam as personagens e o que sentem, coisas que poderiam vir à tona pela palavra, está fora do alcance daquele que assiste, embora, ao mesmo tempo, esteja lá, mas no corpo, nos olhos, e nas paredes do velho cinema devorado pelo tempo faminto -, mas puro jogo de superfícies: a superfície da face da faxineira manca ou do móvel sobre o qual o cigarro queima lentamente, testemunhando o tempo que se esvai e o fim que se anuncia. Superfícies, apenas superfícies. O mais profundo é a pele, diz Valéry.

      Se nós evocamos tanto a necessidade da linguagem, é por acreditarmos religiosamente que o sentido está na linguagem: o enredo e o diálogo nos entregariam o sentido da experiência cinematográfica, de modo que se um filme falha em seu enredo e nos diálogos que apresenta, então, ele “não nos diz nada”, isto é, não tem sentido. Mas Ming-liang desafia essa verdade sobre a linguagem – a linguagem como portadora do sentido -, e situa o espectador num vertiginoso Fora cuja função é, justamente, a de produzir sentido: uma fala além da fala.

      O sentido é “o que nos diz alguma coisa”, mas em Goodbye Dragon Inn o sentido não está enclausurado na linguagem, ele está na imagem, na pura imagem do gesto e da ausência de gesto. O gesto amoroso da faxineira de levar a fruta cozida ao projetista, ou, ainda, o de subir aquelas escadas, degrau por degrau, antes de abandonar o espectador à absoluta ausência; o gesto erótico do rapaz que pede fogo a outro rapaz na tentativa de chamá-lo para si. A captura do gesto não seria possível se houvesse um enredo e um diálogo, pois com tais elementos cinematográficos, o sentido do silêncio, tanto quanto o sentido da ausência (a faxineira não tem o amor do projetista, tampouco o jovem conquista um parceiro) estariam perdidos para sempre no excesso de fala.

      A linguagem não diz o sentido, mas o silêncio e a ausência não param de dizê-lo na imagem, no gesto da imagem: a solidão, a espera, a decepção e o adeus exalada imagem e nos envolve. No filme de Ming-liang o sentido do silêncio e o sentido da ausência estão impressos e expressos nos corpos. Eis uma cena memorável: quando a faxineira vai até a sala do projetor e não encontra o projetista, ela senta-se na cadeira e olha fixamente para a fruta ainda embalada sobre uma pilha de filmes; a fruta era para ele, ela a havia embrulhado e levado, não se sabe se ele chegou a vê-la ou se simplesmente não se importou, mas sabe-se que enquanto ela estava ali sentada, com o olhar fixo na fruta, ela sofria, sofria a dor de ir à busca de seu amado e não encontrá-lo. Uma única palavra é dita, e, todavia, nada está mais escancarado do que a dor da personagem que nos toca.

      O final também surpreende, e não apenas por sua beleza inquestionável. É o momento do grande adeus que dá título ao filme. A faxineira manca, cujo nome não nos é revelado, vem caminhando sob seu pequeno guarda-chuva – chove durante todo o filme. Antes, ela havia visto seu amor partir, e agora, ela devia também partir. Mas é uma partida em que o adeus não é dito – e quiçá nenhuma palavra poderia dizê-lo -, ela apenas dá as costas ao velho cinema e parte, até desaparecer da vista do espectador.

      É simplesmente injusto atacar o filme de Ming-liang tomando por falhas aquilo que é sua grande virtude. Aquilo que há de grandioso e de espetacular no cinema convencional não serve de critério quando um filme já se propõe, desde o início, a não partir da zona de conforto do convencional. Optando pelo não convencional, ele nos dá o que pensar, coisa que o cinema tradicional há muito não tem feito. Goodbye Dragon Inn precisa ser experimentado tendo em vista sua ambição criativa. Do contrário, nenhuma intensidade passará.

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“L’Apollonide”: prostituição e discurso

20 quinta-feira set 2012

Posted by Rico in Cineanálise, Contemporaneidades

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Discurso, Homem, Mulher, Prostituição, Sujeito de enunciação

      Segundo o cineasta Bertrand Bonello “em geral, os pintores e escritores desta época vão aos bordéis e dão o ponto de vista masculino sobre as prostitutas, mas o que me interessava era o olhar das mulheres sobre os homens que as visitavam. Quis mostrar a decadência, o inelutável fim desse mundo”. Eis o mote de L’Apollonide (2011), filme em que acompanhamos a degeneração de uma casa de tolerância do final do século XIX. A declaração do cineasta assegura a compreensão de sua obra. Trata-se de dar voz àqueles que antes nada diziam. E se nada diziam, era porque não podiam dizer, uma vez que se localizavam à margem do plano discursivo, silenciados pela tagarelice de um certo discurso hegemônico com sujeito de enunciação pré-fixado e inalterável; nesse caso: o homem, o discurso masculino acerca do espaço dos bordéis que exclui a palavra das prostitutas que também ocupavam esse espaço. Na pintura, tanto quanto na literatura, é a voz do homem que abafa todas as outras. A palavra, ou melhor, o sentido que ela carrega, é masculina, assim como os traços, as cores e as formas com as quais o pintor preenche suas telas. A prostituta, entendida como sujeito ausente na ordem do discurso, nada diz. Ela tão-somente aparece como objeto sobre o qual o homem tagarela com impertinência e arrogância.

      Assim como Foucault pretendeu encontrar o sentido da loucura recuperando a voz do louco, outrora excluído da ordem do discurso pelos saberes médicos; assim como Michelet, célebre historiador francês que procurou, não escrever a história dos grandes feitos e das figuras icônicas, mas escrever a história dos sujeitos comuns, anônimos, em suma, do povo, que outrora era excluído pelo saber histórico, como que não tendo direito a ocupar um lugar no discurso desse saber; Bonello pretendeu fazer falar esses sujeitos destituídos de fala por uma sutil rede de saberes-poderes. Não são mais os homens, frequentadores dos bordéis, que contam ao ouvinte suas impressões. São elas, as putas, que agora, tendo restituído seu poder discursivo, narram suas experiências com esses homens que a frequentam.

      Não é apenas uma questão de dar às putas o direito à fala, ao falarem, percebemos que elas realmente têm algo a dizer. Seu discurso é rico em significação. Como compreender uma espaço como o bordéu quando aqueles que nele habitam não podem falar? Há toda uma lógica que se faz preciso compreender, isso sem falar nos processos de subjetivação intrínsecos a esse espaço. As mulheres que o habitam têm obrigações, uma rotina, deveres, hábitos a serem rigorosamente repetidos; há inclusive uma certa “ordem moral” à qual elas se submetem: a proprietária do bordéu diz a uma nova integrante da casa que elas não são “simples putas”. E não poderiam ser, visto tratar-se de uma casa que atende a aristocracia francesa. Essas mulheres também amam, sofrem, adoeçem, morrem, alegram-se, entristecem-se, divertem-se: há algo para além dos leitos nos quais elas se deitam com seus clientes e isso o filme mostra muito bem. Ele cumpre, portanto, a tarefa de toda boa arte: tornar visível o invisível. O erro daqueles que tentam retratar as putas é que eles a retratam apenas do ponto de vista da relação sexual, e sempre do ponto de vista do homem sobre o sexo. Ou, o que é ainda pior, a retratam segundo um certo moralismo (já o cineasta não introduz quaisquer sentidos morais à trama, não há nada seu ali, as prostitutas falam por si mesmas). Nunca se fala sobre o que elas fazem quando não estão com seus clientes.  Qual o seu expediente diurno? Por exemplo, a série de obrigações que se deve cumprir antes de a casa abrir (estar sempre perfumada, manter-se saudável, não sair a não ser quando acompanhada) e após ela fechar (os banhos, a preocupação minuciosa com a higiene pessoal). Os passeios, a socialização entre as mulheres da casa, os laços afetivos que elas estabelecem entre si e entre seus clientes.

      Acontece que se os homens têm sua perspectiva sobre as prostitutas, as prostitutas, por sua vez, têm sua perspectiva acerca dos homens com os quais elas se deitam. Elas também produzem imagens sobre o masculino. E são muitos tipos que elas mesmas elencam: os doces e amáveis, os perversos, os extravagantes, os gastadores e os não gastadores etc. E assim como os homens, elas também elegem seus clientes preferidos de acordo com uma série de critérios aos quais só temos acesso se darmos a elas a potência do discurso, potência através da qual a experiência da prostituição é dissecada. Ora, essa capacidade de dar sentido à experiência da prostituição não é uma capacidade destinada, só e somente só, aos homens. Nunca se compreenderá o fenômeno da prostituição enquanto se privilegiar o discurso do homem sobre ele, como se o homem fosse o único portador de discurso, isto é, o porta-voz da experiência da prostituição, ou, para falar de outro modo, como se o homem portasse a verdade da prostituição. O que o filme de Bonello faz é dar à mulher o estatuto de sujeito de enunciação, isto é, sujeito capaz de produzir discurso – um discurso coerente e vivo. E é um discurso sobre um espaço em que subjetividades são formadas. A prostituta é inserida no interior da ordem do discurso, não mais como objeto sobre o qual se fala, mas como sujeito que o produz, restituindo, assim, sua posivitidade.

“É só brincadeira” – considerações sobre o cinema japonês e a vingança

14 terça-feira fev 2012

Posted by Rico in Cineanálise, Contemporaneidades

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Cinema, Livreto, Vingança

Tive o deleite de prefaciar o livreto escrito pelo meu caro amigo Felipe Pacheco. Trata-se de um escrito moral, não do ponto de vista dos moralizadores, como os padres e os crédulos, mas dos analistas da moral, dos que dão à moral um caráter problemático. Trata-se, afinal, de um escrito “para além do bem e do mal”, como diria o filósofo. A partir de uma reflexão acerca do cinema japonês, estuda o fenômeno da vingança e principia uma transvaloração dos valores ocidentais. Um texto grave e alegre, destituído de toda moralina.

http://www.mediafire.com/?2b3y2177xsh37pi

A Clockwork Orange: estética da violência e niilismo

30 sábado jul 2011

Posted by Rico in Cineanálise, Contemporaneidades, Foucault, Nietzsche, Psicologia

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Arte, Estética, Natureza humana, Niilismo, Violência

      Alex DeLarge não é um anti-herói qualquer; ele é a expressão daquilo que se poderia chamar de “o niilismo pós-moderno” – ou em termos nietzscheanos: niilismo passivo. Sua grotesca brutalidade – roubo, estupro, assassinato, brigas sangrentas com rivais etc., são parte de seu expediente perverso – evidencia a queda dos valores outrora louvados e queridos pelos homens. O diálogo com o mendigo, aquele de logo do início do filme, que é espancado quase que até a morte por Alex e seus amigos drug’s, é lapidar nesse sentido. O mendigo, ao notar que será agredido, protesta em nome dos valores, dos ideias de tempos antigos. Reclama ele que os jovens não respeitam mais os velhos; reclama que falta à sociedade lei e ordem. Lei e ordem! Quer ele o retorno ao conservadorismo. Um último herdeiro da modernidade, reclamando seus direitos. Mas já não se está mais na modernidade – há dela tão-somente ruínas -, vivemos hoje – e já naquela época – a pós-modernidade: a oposição radical a tudo o que era então compreendido como moderno: a moralidade, a política, a economia, a religião, os ideais de todos os tipos… O que restou? Nada, é a resposta; niilismo, pois!

      Compreendamos aquilo que Alex chama de “ultra-violência” como um sintoma, de modo que à maneira do sintomatologista, examinemos esse sintoma e vejamos para onde ele nos leva; tratar-se-á de um procedimento genealógico que nos permite ver o que há para além dos sintomas que nos são apresentados – o genealogista é também médico. Então perguntar-se-á: sintoma de que, afinal? É o sintoma de decadência, isto é, de niilismo. A ultra-violência nasce de uma renegação dos antigos valores, como um desvio, uma transgressão articulada e racionalizada. Não se trata de loucura, como insinuam alguns personagens, é uma violência fruto da razão mais refinada que se possa existir – a violência é racional! O mendigo, velho, acabado, mergulhado em álcool, cantando suas velhas canções oriundas de tempos que não retornam, representa a decadência de tudo o que se chamava modernidade, e Alex é seu antagonista, o filho pródigo do niilismo pós-moderno. Ultra-violência significa violentia per violentia. Falemos de uma moral que não tem por conteúdo valores, mas a violência enquanto tal. O que Alex quer? O que Alex procura? Eis a resposta: a violência, a pura e divina violência.

      Mas não se trata de uma violência qualquer. Alex conhece bem a sua musa e a orna com as mais belas pedras preciosas. Alex é também um artista. Ele dá um caráter artístico à violência que pratica. Enquanto ouve a Nona Sinfonia de Ludwig Van Beethoven, imagina as cenas mais terríveis. Ele a experimenta – a violência -, como arte; cada ato atroz que comete é como se fizesse uma obra de arte. Outro exemplo, esse mais cristalino que o anterior: enquanto estupra a esposa do velho escritor, ele canta, alegremente, Singin’ in the Rain, célebre música cantada por Gene Kelly no musical da Broadway. Ele não apenas bate, violenta, tortura, ele interpreta uma personagem; assassino-artista, assassino-monstro: a arte da crueldade. E faz suas perversidades com teatralidade, com finesse, com graça e brilho. Mas não nos enganemos, isto não lhe dá nenhum direito, nenhum crédito. Sim, ele estetiza a violência. Ele a concebe como arte. Todavia, é a forma estética do vazio que se vê ali. Alex estetiza tudo o que é niilista.

      Poderíamos dizer: se, por um lado, os edifícios da modernidade ruíram, restando apenas o entulho, a poeira, as ruínas dos ideais, por outro, nada houve que pudesse se colocar em lugar desses ideais mortos. Nietzsche o percebe muito bem ao dizer:

“– O que aconteceu, no fundo? O sentimento de ausência de valor foi alvejado, quando se compreendeu que nem com o conceito “fim“, nem com o conceito “unidade“, nem com o conceito “verdade” se poderia interpretar o caráter global da existência. Com isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do acontecer: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso… não se tem absolutamente mais nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo… Em suma: as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos imposto ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora o mundo parece sem valor…” (NIETZSCHE, 1999, p. 431)

      É assim que, por não mais haver valores, o homem entrega-se ao não-valor absoluto. A ultra-violência é um não-valor. Alex é um artista, mas um artista do niilismo. Sua moral é a moral da crueldade nua e crua. Não há valores – nunca houve! -, há apenas sangue, luta… Pode-se objetar que na prisão, enquanto ele lia a bíblia e delirava com as lutas, ou imaginando ser um soldado romano a açoitar com crueldade e deleite o Crucificado, ele dá testemunho de um instinto nobre, como falaria Nietzsche, que é precisamente a inspiração belicista dos homens romanos, e mesmo dos antigos guerreiros, os quais ele encarnava com paixão e loucura. Mas mesmo aí nunca se tratou de valores, e sim de violência. Os romanos exaltavam a guerra e a luta, mas havia uma moral, valores morais que lhes permitiam exaltar a guerra e a luta. Um garoto que se reúne com seus amigos para bater em mendigos, roubar carros e estuprar mulheres não possui em si nada de nobre, nada de altivo, nada do orgulho e da coragem dos heróis da antiguidade greco-romana. Por conseguinte, Alex nada mais é que um decadente.

      Chamemos de “estética da violência” o processo segundo o qual a violência é inspirada, provocada, impulsionada e logo depois seguida de um sentimento estético. É esse sentimento estético que está na raiz das sensações despertadas em Alex pela bela música de Beethoven (sentimento estético enquanto produto e produtor de violência). Entretanto, se por um lado Beethoven era uma espécie de inspirador, por outro ele significava uma não-violência estranha. Paradoxalmente, Beethoven era o limite de sua crueldade; Alex mesmo diz: “ele nunca fez mal a ninguém, era apenas um músico”. Se por um lado, a música erudita lhe inspirava e mesmo alimentava sua ultra-violência, por outro, Beethoven representava para ele um “santuário” de não-violência. Era o modo segundo o qual Alex agenciava, fazia rizoma com a música, que se tornava possível pensar Beethoven, a arte, como um estimulante para a violência, como se a arte despertasse uma natureza adormecida ou latente; “liberar um pouco da velha ultra-violência”, dizia Alex. Isso diz muito.

      Liberar a ultra-violência significa, em outras palavras: liberar a animalidade, a selvageria da própria natureza humana, que é má, perversa, diabólica. É o indivíduo hobbesiano. A ideia que o filme nos transmite, a substituição da punição pela terapia, consiste precisamente nisso: pensar uma natureza humana perversa que, enquanto tal, tem que ser suprimida. Como? impondo-lhe um regime de sobrecarga de dor e sofrimento, fazer com que o homem fisiologicamente recuse o mal, como se a maldade fosse uma questão biológica, genética. Todavia, moralizar a natureza é um engodo, uma idiossincrasia. Supor um homem natural que seja também “bom” ou “mau” é supor que um leão que dilacera sua presa seja também perverso. Objetar-se-á que o leão tem necessidade de matar sua presa – precisa alimentar-se. Ora, mas quem ousará dizer que não há necessidade no homem? O homem produz suas próprias necessidades e delas extrai sua força, sua gana, sua vida… Mas as necessidades “humanas, demasiado humanas”, por mais produzidas que sejam, são ainda necessidades!

      Entramos agora num outro âmbito, o da análise da segunda parte do filme. Falamos do Alex pré-tratamento, e agora chegou a hora de falar do Alex pós-tratamento. Para que pudesse sair da prisão em duas semanas, Alex faz com que seja selecionado para participar de uma experiência científica; chamavam-na de Técnica Ludovico. Em que consistia? Consistia em transformar a natureza má em boa natureza por meio do uso de certas drogas e vídeos de extrema violência, que em conjunto com essas drogas, faziam com que o paciente desenvolvesse uma repulsa fisiológica pela maldade. Entretanto, não foi apenas o “instinto de matar” que fora arrancado de Alex pelo tratamento, mas também a sua libido. Passou a recusar tanto a violência quanto o sexo. Se tentasse cometer qualquer ato violento, ou ousasse se aproximar de uma mulher, passava mal, sentia enjoos e logo desistia. Alex tornou-se, então, um homem castrado. A ciência lhe arrancou o desejo. Em nome do progresso pode-se arrancar tudo de um homem, até mesmo o que lhe é mais vital: o desejo. É como se o homem que deseja fosse um crime. Não posso desejar uma mulher, porque se o fizer, estarei sendo um delinquente.

      Mas voltemos a falar da relação entre violência, natureza humana e terapia. Quando os homens eram punidos e enviados à prisão, acreditava-se que se tratava de um ato reprovável socialmente e que por isso deveria ser expurgado, e a punição servia como um meio de impedir que esse ato se repetisse. Privar alguém de sua liberdade – não poder vestir-se como quiser, não poder fazer sexo, não poder comer e/ou beber o que se queria etc. -, era compreendido como uma espécie de “reforma moral”. O preso, por não desejar retornar à prisão, “melhora”. Jamais se perguntava acerca do indivíduo, mas sobre o ato cometido. Distinção entre direito do autor (o primeiro) e direito do ato (o segundo). Mas Foucault mostra-nos bem que houve uma mudança na maneira segundo a qual o direito compreendia o crime. Passou-se a se perguntar a respeito do indivíduo que cometia o ato criminoso: “por que matar?”, “quais as razões que o levaram a cometer tal crime?”, “o que ele desejava?” etc. E não demorou também para se perguntar acerca da razão do criminoso, e consequentemente, acerca de sua loucura: “teria ele cometido tal crime em sua razão, ou estivera ele fora de si?”. É o que Foucault chama de “sansão normalizadora”: quando a distinção normal-patológico é introduzida no direito, o que muito provavelmente dera origem à psicologia jurídica – podemos falar também da psiquiatria forense que vai discutir a imputabilidade ou inimputabilidade de um indivíduo num processo.

      O que se passa no filme é um esforço da ciência no sentido de uma patologização da violência e da crueldade; falar-se-á que a violência – o crime – é algo de intrínseco às naturezas más, enquanto nas naturezas boas, esse elemento está ausente. A conversa entre a médica e Alex, no quarto do hospital, nos mostra precisamente isso. Segundo a médica, Alex está doente e precisa ser curado, o que ele faz não é algo que alguém em sua razão faria. É anormal ser violento e cruel. Se se comete terribilidades, então, se está doente. Normal é ser bom, digo, não ser violento, não ser cruel, não ser um devasso, um libertino, um inescrupuloso. Assistimos ao absurdo científico da patologização de algo que nada mais é do que a expressão de instintos humanos – instintos humanos que, enquanto tais, não nascem de uma doença, mas do próprio homem enquanto criatura sã. Só com o advento do cristianismo é que a violência, a crueldade – a guerra também – tornou-se algo abominável. Defende-se a paz, o tipo homem domesticado – separado daquilo que ele pode, considerando a potência da crueldade e da violência, que também podem ser ativas, afirmadoras -, é o “cristão”, o “asceta”. Qual foi o resultado do tratamento de Alex? Foi isso: tornaram-no um cristão. A solução para o niilismo – a violência pela violência – é nada mais, nada menos, que uma dose a mais de niilismo: tornando o homem cristão salvaremos a humanidade, a tornaremos “melhor”.

      Mas por que dizemos que Alex tornou-se cristão? Ora, Nietzsche o diz muito bem, em seu belíssimo O Anticristo; a verdadeira “boa nova” que Cristo trazia não era de modo algum aquilo que podemos encontrar em Paulo. Paulo foi aquele que com ódio e gênio distorceu a verdadeira palavra de Cristo. Cristo trazia o niilismo passivo, aquele niilismo que nos acomete quando não há mais vontade, um nada-de-vontade; não mais uma vontade-de-nada, que ainda era uma vontade, mas o puro e simples vazio – o niilismo. Cristo não se rebelou, não opôs resistência aos seus algozes… Ensinou-nos que devíamos dar a outra face. Cristo era budista, não cristão. Ele trazia aquilo que o budismo já havia conquistado, pacificamente, gloriosamente, no oriente. Uma ausência total de querer, um toedium vitae – rejeita-se até mesmo o desejo de aniquilamento, o desejo de morte. Cansado demais para morrer, o niilista passivo abdica até da morte. Extinguir-se passivamente é o que ensina Cristo. E Alex não tornara-se precisamente um Cristo de nosso tempo? Alex não resiste. Faz tudo o que seus inimigos lhe impõem. Lambe o sapato do seu algoz no teatro, foge do mendigo que o reconheceu na ponte, e no final, salta pela janela para “zerar-se”, para dar cabo de sua própria vida, na ânsia de “sumir deste mundo perverso e cruel”.

      Sumir deste mundo perverso e cruel é a grande e preciosa verdade de Alex. Era ela sua descoberta mais importante. Ele jamais poderia viver neste mundo. Lhe sucederia o mesmo que sucedera com Cristo em sua época: crucificado. E também a grandiosa e perfeita hipocrisia se revela: querem acabar com a violência, mas não cessam de a produzi-la e reproduzi-la; com alegria, com doce alegria! Eles querem que um homem bom – supondo que esse homem exista ou existiu, e o que é mais importante, que seja desejável – sobreviva em uma sociedade que em seu cerne é perversa. Seu destino não será outro senão o de ser instrumentalizado, violentado, assassinado, pela sociedade. A reintegração é um mito, não por que o criminoso seja “incurável”, mas por que a sociedade mesma está doente. Não há homens bons em uma sociedade que produz, precisamente, o oposto – que precisa produzir. Uma alma cristã como a dele – dar a outra face, não opor resistência aos seus algozes, o verdadeiro e único cristão -, lhe custará a própria vida; tornar-se-á insuportável viver. Não há espaço para ovelhas numa sociedade de lobos. O cristão verdadeiro é o cristão impossível. Alex o viveu e o matou. Ao saltar da janela, não foi a si mesmo que matou, mas ao ideário cristão que lhe constituía. O salto de Alex é o simbolismo da morte do cristianismo, o ideal moral do cristianismo. Não há bons cristãos. Há tão-somente cristãos menos ou mais hipócritas. O fracasso de Alex é o fracasso do cristianismo.

Máximas, frases e outras brincadeiras

"Frequentar um autor, não se trata de mera escolha de palavras, mas de uma prática, questão de vida, não de léxico ou estilo verbal. É uma urgência do pensamento não criar laços doutrinários e fascistas com o que amamos. Deve-se frequentar um autor tal como se frequenta um café e nada mais. Comprar um café e depois ir embora, com a tranquilidade e inocência de quem não produz raízes; deixá-lo [o autor], por mais que se volte outras vezes a ele, assim como sempre retornamos aos cafés que mais nos agradam sem, todavia, fazermos deles a nossa casa."

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