Segundo o cineasta Bertrand Bonello “em geral, os pintores e escritores desta época vão aos bordéis e dão o ponto de vista masculino sobre as prostitutas, mas o que me interessava era o olhar das mulheres sobre os homens que as visitavam. Quis mostrar a decadência, o inelutável fim desse mundo”. Eis o mote de L’Apollonide (2011), filme em que acompanhamos a degeneração de uma casa de tolerância do final do século XIX. A declaração do cineasta assegura a compreensão de sua obra. Trata-se de dar voz àqueles que antes nada diziam. E se nada diziam, era porque não podiam dizer, uma vez que se localizavam à margem do plano discursivo, silenciados pela tagarelice de um certo discurso hegemônico com sujeito de enunciação pré-fixado e inalterável; nesse caso: o homem, o discurso masculino acerca do espaço dos bordéis que exclui a palavra das prostitutas que também ocupavam esse espaço. Na pintura, tanto quanto na literatura, é a voz do homem que abafa todas as outras. A palavra, ou melhor, o sentido que ela carrega, é masculina, assim como os traços, as cores e as formas com as quais o pintor preenche suas telas. A prostituta, entendida como sujeito ausente na ordem do discurso, nada diz. Ela tão-somente aparece como objeto sobre o qual o homem tagarela com impertinência e arrogância.
Assim como Foucault pretendeu encontrar o sentido da loucura recuperando a voz do louco, outrora excluído da ordem do discurso pelos saberes médicos; assim como Michelet, célebre historiador francês que procurou, não escrever a história dos grandes feitos e das figuras icônicas, mas escrever a história dos sujeitos comuns, anônimos, em suma, do povo, que outrora era excluído pelo saber histórico, como que não tendo direito a ocupar um lugar no discurso desse saber; Bonello pretendeu fazer falar esses sujeitos destituídos de fala por uma sutil rede de saberes-poderes. Não são mais os homens, frequentadores dos bordéis, que contam ao ouvinte suas impressões. São elas, as putas, que agora, tendo restituído seu poder discursivo, narram suas experiências com esses homens que a frequentam.
Não é apenas uma questão de dar às putas o direito à fala, ao falarem, percebemos que elas realmente têm algo a dizer. Seu discurso é rico em significação. Como compreender uma espaço como o bordéu quando aqueles que nele habitam não podem falar? Há toda uma lógica que se faz preciso compreender, isso sem falar nos processos de subjetivação intrínsecos a esse espaço. As mulheres que o habitam têm obrigações, uma rotina, deveres, hábitos a serem rigorosamente repetidos; há inclusive uma certa “ordem moral” à qual elas se submetem: a proprietária do bordéu diz a uma nova integrante da casa que elas não são “simples putas”. E não poderiam ser, visto tratar-se de uma casa que atende a aristocracia francesa. Essas mulheres também amam, sofrem, adoeçem, morrem, alegram-se, entristecem-se, divertem-se: há algo para além dos leitos nos quais elas se deitam com seus clientes e isso o filme mostra muito bem. Ele cumpre, portanto, a tarefa de toda boa arte: tornar visível o invisível. O erro daqueles que tentam retratar as putas é que eles a retratam apenas do ponto de vista da relação sexual, e sempre do ponto de vista do homem sobre o sexo. Ou, o que é ainda pior, a retratam segundo um certo moralismo (já o cineasta não introduz quaisquer sentidos morais à trama, não há nada seu ali, as prostitutas falam por si mesmas). Nunca se fala sobre o que elas fazem quando não estão com seus clientes. Qual o seu expediente diurno? Por exemplo, a série de obrigações que se deve cumprir antes de a casa abrir (estar sempre perfumada, manter-se saudável, não sair a não ser quando acompanhada) e após ela fechar (os banhos, a preocupação minuciosa com a higiene pessoal). Os passeios, a socialização entre as mulheres da casa, os laços afetivos que elas estabelecem entre si e entre seus clientes.
Acontece que se os homens têm sua perspectiva sobre as prostitutas, as prostitutas, por sua vez, têm sua perspectiva acerca dos homens com os quais elas se deitam. Elas também produzem imagens sobre o masculino. E são muitos tipos que elas mesmas elencam: os doces e amáveis, os perversos, os extravagantes, os gastadores e os não gastadores etc. E assim como os homens, elas também elegem seus clientes preferidos de acordo com uma série de critérios aos quais só temos acesso se darmos a elas a potência do discurso, potência através da qual a experiência da prostituição é dissecada. Ora, essa capacidade de dar sentido à experiência da prostituição não é uma capacidade destinada, só e somente só, aos homens. Nunca se compreenderá o fenômeno da prostituição enquanto se privilegiar o discurso do homem sobre ele, como se o homem fosse o único portador de discurso, isto é, o porta-voz da experiência da prostituição, ou, para falar de outro modo, como se o homem portasse a verdade da prostituição. O que o filme de Bonello faz é dar à mulher o estatuto de sujeito de enunciação, isto é, sujeito capaz de produzir discurso – um discurso coerente e vivo. E é um discurso sobre um espaço em que subjetividades são formadas. A prostituta é inserida no interior da ordem do discurso, não mais como objeto sobre o qual se fala, mas como sujeito que o produz, restituindo, assim, sua posivitidade.