Human Brain (12 x12, óleo sobre tela) – Hall Groat II.
Quem é o acéfalo? Dir-se-á que o acéfalo se define pela oposição de valores lógicos no pensamento (oposição entre aquilo que eu penso como verdadeiro e aquilo que o outro pensa como falso). O acéfalo seria, assim, o inverídico em oposição ao verídico, àquele que está de posse do verdadeiro, “não diga esse tipo de coisa, seu acéfalo…” etc. Não ter um compromisso com o verdadeiro ou tomar o falso pelo verdadeiro é a atitude que caracteriza o acéfalo. Mas nós pensamos, ao contrário, que este não seja um bom conceito de acéfalo, seria preciso dar-lhe novos elementos. E como se não bastasse, acreditamos que tal conceito ocultaria do pensamento sua própria gênese (ele se torna órfão).
Para nós, o acéfalo nada tem a ver com o que se diz dele comumente. Se para a maioria, ser acéfalo é não pensar com verdade, para nós o acéfalo é o estéril. O elemento do pensamento não é o verdadeiro e o falso, mas a criação. Define-se o pensamento pela sua genitalidade e não por valores lógicos que só vêm depois, quando o pensamento, enquanto criação, já se realizou1. O não-pensamento (o ser-acéfalo do pensamento) consiste em ser estéril no pensamento, e nesse sentido há mais acéfalos do que pode imaginar nossa vã filosofia. É difícil, árduo… o ato de criação ocorre aqui e acolá, nunca ordenadamente ou segundo um progresso, uma evolução, uma história necessários; a criação se dá precisamente no momento em que se rompe com o progresso, a evolução e a história. Sai-se de tudo isso para criar e nunca se trata de algo certo (o fracasso ronda o criador) – seja em filosofia, em arte ou em ciência (as três formas do pensamento ou Caóides). O que é ter uma Ideia? Em filosofia, ter uma ideia é criar conceitos – o conceito é uma Ideia (já não se trata da Ideia preconizada por Platão, visto que não há transcendência, mas pura presença da ideia num plano de imanência). E haverá ainda uma complicação, que se verá mais tarde num livro derradeiro de Gilles Deleuze, que consiste em, por meio da ideia de pensamento como criação, dar ao pensamento, outrossim, um caráter prático, empirista:
“Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 143)
Quando se cria um conceito… é festa, é a alegria e gozo (o momento feliz da diferença). Isso não acontece frequentemente. Não se decide fazer um conceito ex nihilo, o conceito possui uma necessidade de criação sem a qual ele não seria possível. Mas há um problema ainda mais sério: não se pensa por que se quer, mas por que se é forçado a pensar. Em Proust e os Signos, Deleuze tentará mostrar como o pensamento não se define por uma “boa vontade do pensador” (querer o verdadeiro) e por uma “natureza reta do pensamento” (possuir, de direito, o verdadeiro), mas por uma agressão, por uma violência (dos signos). Pensar é ser violentado pelos signos, isto é, pelas forças que animam o pensamento. Só se pensa ao passo de uma dura opressão e aí o pensamento será, sempre, a força de um involuntário, “cada faculdade, inclusive a do pensamento, não tem outra aventura a não ser a do involuntário; o uso involuntário permanece cravado no empírico” (DELEUZE, 2006, p. 211). Isto torna tudo mais difícil, visto que a Ideia ou o conceito dependem desses encontros em que o pensamento põe-se a movimentar-se por forças que lhe são exteriores. Nietzsche soube perceber muito bem essa natureza criativa do pensamento enquanto tal:
“Não somos rãs pensadores, aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas; temos de parir constantemente nossos pensamentos na nossa dor e dar-lhes maternalmente todo o nosso sangue, coração, fogo, alegria, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que existe em nós.” (NIETZSCHE, 2003, p. 16)
Para Deleuze “pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar ‘pensar’ no pensamento” (DELEUZE, 2006, p. 213), o pensador é a um só tempo, a cadela prenhe e o cão que fecunda. E daí, outrossim, a necessidade de se pensar um novo conceito de acéfalo (para além, é certo, de um moralismo tácito); acéfalo somos todos nós na medida em que não produzimos ideias (os conceitos em filosofia, as funções em ciência ou as sensações em arte2), em que, em matéria de pensamento, somos mulheres de útero ressequido. Com esta nova imagem do pensamento ou pensamento sem imagem (convém melhor este segundo termo, uma vez que tal subversão da imagem dogmática e moral do pensamento não está dissociada de um certo cogito-esquizofrênico3), dá-se ao pensamento novas possibilidades, dentre elas a possibilidade de se pensar o diferente em relação ao diferente e por meio da própria diferença (o simulacro enquanto sistema diferencial). O que está em jogo, aí, é: 1) a invenção de novas formas de pensar para além de uma ortodoxia; e 2) o que significa pensar, o que é o pensamento. O acéfalo só é acéfalo na medida em que não pensa? Sim, já não se trata mais de dizer “o acéfalo é todo aquele que pensa mal” – não! Agora, o acéfalo adquire novos tons, uma melodia nova, ele é o não-pensamento par excellence.
Notas:
1: DELEUZE, G. in “Diferença e Repetição“, p. 213-214. “Eis por que Artaud opõe, no pensamento, a genitalidade ao inatismo, mas, igualmente, à reminiscência, estabelecendo, assim, o princípio de um empirismo transcendental: “Sou um genital inato… Há imbecis que se crêem seres, seres por inatismo. Quanto a mim, sou aquele que, para ser, deve açoitar seu inatismo. Aquele que, por inatismo, é aquele que deve ser um ser, isto é, sempre açoitar esta espécie de negativo canil, oh!, cadelas de impossibilidade… Sob a gramática, há o pensamento que é um opóbrio mais forte a ser vencido, uma virgem muito arisca a ser ultrapassada quando ela é tomada como um fato inato. Pois o pensamento é uma matrona que nem sempre existiu”.”
2: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. in “O que é a Filosofia?”, p. 277. “(…) plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do conceito, força da sensação, função do conhecimento; conceitos e personagens conceituais, sensações e figuras estéticas, funções e observadores parciais”.
3: DELEUZE, G. in “Diferença e Repetição”, p. 214. “À imagem dogmática do pensamento, não se trata de opor uma outra imagem, agora tomada, por exemplo, de esquizofrenia. Trata-se, antes, de lembrar que a esquizofrenia não é somente um fato humano, mas uma possibilidade do pensamento, que apenas se revela como tal na abolição da imagem.”
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34 Ltda, 1992.
_______, _. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2ª edição, 2006.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Ed. Martin Claret. 2ª edição, 2003.