Alex DeLarge não é um anti-herói qualquer; ele é a expressão daquilo que se poderia chamar de “o niilismo pós-moderno” – ou em termos nietzscheanos: niilismo passivo. Sua grotesca brutalidade – roubo, estupro, assassinato, brigas sangrentas com rivais etc., são parte de seu expediente perverso – evidencia a queda dos valores outrora louvados e queridos pelos homens. O diálogo com o mendigo, aquele de logo do início do filme, que é espancado quase que até a morte por Alex e seus amigos drug’s, é lapidar nesse sentido. O mendigo, ao notar que será agredido, protesta em nome dos valores, dos ideias de tempos antigos. Reclama ele que os jovens não respeitam mais os velhos; reclama que falta à sociedade lei e ordem. Lei e ordem! Quer ele o retorno ao conservadorismo. Um último herdeiro da modernidade, reclamando seus direitos. Mas já não se está mais na modernidade – há dela tão-somente ruínas -, vivemos hoje – e já naquela época – a pós-modernidade: a oposição radical a tudo o que era então compreendido como moderno: a moralidade, a política, a economia, a religião, os ideais de todos os tipos… O que restou? Nada, é a resposta; niilismo, pois!
Compreendamos aquilo que Alex chama de “ultra-violência” como um sintoma, de modo que à maneira do sintomatologista, examinemos esse sintoma e vejamos para onde ele nos leva; tratar-se-á de um procedimento genealógico que nos permite ver o que há para além dos sintomas que nos são apresentados – o genealogista é também médico. Então perguntar-se-á: sintoma de que, afinal? É o sintoma de decadência, isto é, de niilismo. A ultra-violência nasce de uma renegação dos antigos valores, como um desvio, uma transgressão articulada e racionalizada. Não se trata de loucura, como insinuam alguns personagens, é uma violência fruto da razão mais refinada que se possa existir – a violência é racional! O mendigo, velho, acabado, mergulhado em álcool, cantando suas velhas canções oriundas de tempos que não retornam, representa a decadência de tudo o que se chamava modernidade, e Alex é seu antagonista, o filho pródigo do niilismo pós-moderno. Ultra-violência significa violentia per violentia. Falemos de uma moral que não tem por conteúdo valores, mas a violência enquanto tal. O que Alex quer? O que Alex procura? Eis a resposta: a violência, a pura e divina violência.
Mas não se trata de uma violência qualquer. Alex conhece bem a sua musa e a orna com as mais belas pedras preciosas. Alex é também um artista. Ele dá um caráter artístico à violência que pratica. Enquanto ouve a Nona Sinfonia de Ludwig Van Beethoven, imagina as cenas mais terríveis. Ele a experimenta – a violência -, como arte; cada ato atroz que comete é como se fizesse uma obra de arte. Outro exemplo, esse mais cristalino que o anterior: enquanto estupra a esposa do velho escritor, ele canta, alegremente, Singin’ in the Rain, célebre música cantada por Gene Kelly no musical da Broadway. Ele não apenas bate, violenta, tortura, ele interpreta uma personagem; assassino-artista, assassino-monstro: a arte da crueldade. E faz suas perversidades com teatralidade, com finesse, com graça e brilho. Mas não nos enganemos, isto não lhe dá nenhum direito, nenhum crédito. Sim, ele estetiza a violência. Ele a concebe como arte. Todavia, é a forma estética do vazio que se vê ali. Alex estetiza tudo o que é niilista.
Poderíamos dizer: se, por um lado, os edifícios da modernidade ruíram, restando apenas o entulho, a poeira, as ruínas dos ideais, por outro, nada houve que pudesse se colocar em lugar desses ideais mortos. Nietzsche o percebe muito bem ao dizer:
“– O que aconteceu, no fundo? O sentimento de ausência de valor foi alvejado, quando se compreendeu que nem com o conceito “fim“, nem com o conceito “unidade“, nem com o conceito “verdade” se poderia interpretar o caráter global da existência. Com isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do acontecer: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso… não se tem absolutamente mais nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo… Em suma: as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos imposto ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora o mundo parece sem valor…” (NIETZSCHE, 1999, p. 431)
É assim que, por não mais haver valores, o homem entrega-se ao não-valor absoluto. A ultra-violência é um não-valor. Alex é um artista, mas um artista do niilismo. Sua moral é a moral da crueldade nua e crua. Não há valores – nunca houve! -, há apenas sangue, luta… Pode-se objetar que na prisão, enquanto ele lia a bíblia e delirava com as lutas, ou imaginando ser um soldado romano a açoitar com crueldade e deleite o Crucificado, ele dá testemunho de um instinto nobre, como falaria Nietzsche, que é precisamente a inspiração belicista dos homens romanos, e mesmo dos antigos guerreiros, os quais ele encarnava com paixão e loucura. Mas mesmo aí nunca se tratou de valores, e sim de violência. Os romanos exaltavam a guerra e a luta, mas havia uma moral, valores morais que lhes permitiam exaltar a guerra e a luta. Um garoto que se reúne com seus amigos para bater em mendigos, roubar carros e estuprar mulheres não possui em si nada de nobre, nada de altivo, nada do orgulho e da coragem dos heróis da antiguidade greco-romana. Por conseguinte, Alex nada mais é que um decadente.
Chamemos de “estética da violência” o processo segundo o qual a violência é inspirada, provocada, impulsionada e logo depois seguida de um sentimento estético. É esse sentimento estético que está na raiz das sensações despertadas em Alex pela bela música de Beethoven (sentimento estético enquanto produto e produtor de violência). Entretanto, se por um lado Beethoven era uma espécie de inspirador, por outro ele significava uma não-violência estranha. Paradoxalmente, Beethoven era o limite de sua crueldade; Alex mesmo diz: “ele nunca fez mal a ninguém, era apenas um músico”. Se por um lado, a música erudita lhe inspirava e mesmo alimentava sua ultra-violência, por outro, Beethoven representava para ele um “santuário” de não-violência. Era o modo segundo o qual Alex agenciava, fazia rizoma com a música, que se tornava possível pensar Beethoven, a arte, como um estimulante para a violência, como se a arte despertasse uma natureza adormecida ou latente; “liberar um pouco da velha ultra-violência”, dizia Alex. Isso diz muito.
Liberar a ultra-violência significa, em outras palavras: liberar a animalidade, a selvageria da própria natureza humana, que é má, perversa, diabólica. É o indivíduo hobbesiano. A ideia que o filme nos transmite, a substituição da punição pela terapia, consiste precisamente nisso: pensar uma natureza humana perversa que, enquanto tal, tem que ser suprimida. Como? impondo-lhe um regime de sobrecarga de dor e sofrimento, fazer com que o homem fisiologicamente recuse o mal, como se a maldade fosse uma questão biológica, genética. Todavia, moralizar a natureza é um engodo, uma idiossincrasia. Supor um homem natural que seja também “bom” ou “mau” é supor que um leão que dilacera sua presa seja também perverso. Objetar-se-á que o leão tem necessidade de matar sua presa – precisa alimentar-se. Ora, mas quem ousará dizer que não há necessidade no homem? O homem produz suas próprias necessidades e delas extrai sua força, sua gana, sua vida… Mas as necessidades “humanas, demasiado humanas”, por mais produzidas que sejam, são ainda necessidades!
Entramos agora num outro âmbito, o da análise da segunda parte do filme. Falamos do Alex pré-tratamento, e agora chegou a hora de falar do Alex pós-tratamento. Para que pudesse sair da prisão em duas semanas, Alex faz com que seja selecionado para participar de uma experiência científica; chamavam-na de Técnica Ludovico. Em que consistia? Consistia em transformar a natureza má em boa natureza por meio do uso de certas drogas e vídeos de extrema violência, que em conjunto com essas drogas, faziam com que o paciente desenvolvesse uma repulsa fisiológica pela maldade. Entretanto, não foi apenas o “instinto de matar” que fora arrancado de Alex pelo tratamento, mas também a sua libido. Passou a recusar tanto a violência quanto o sexo. Se tentasse cometer qualquer ato violento, ou ousasse se aproximar de uma mulher, passava mal, sentia enjoos e logo desistia. Alex tornou-se, então, um homem castrado. A ciência lhe arrancou o desejo. Em nome do progresso pode-se arrancar tudo de um homem, até mesmo o que lhe é mais vital: o desejo. É como se o homem que deseja fosse um crime. Não posso desejar uma mulher, porque se o fizer, estarei sendo um delinquente.
Mas voltemos a falar da relação entre violência, natureza humana e terapia. Quando os homens eram punidos e enviados à prisão, acreditava-se que se tratava de um ato reprovável socialmente e que por isso deveria ser expurgado, e a punição servia como um meio de impedir que esse ato se repetisse. Privar alguém de sua liberdade – não poder vestir-se como quiser, não poder fazer sexo, não poder comer e/ou beber o que se queria etc. -, era compreendido como uma espécie de “reforma moral”. O preso, por não desejar retornar à prisão, “melhora”. Jamais se perguntava acerca do indivíduo, mas sobre o ato cometido. Distinção entre direito do autor (o primeiro) e direito do ato (o segundo). Mas Foucault mostra-nos bem que houve uma mudança na maneira segundo a qual o direito compreendia o crime. Passou-se a se perguntar a respeito do indivíduo que cometia o ato criminoso: “por que matar?”, “quais as razões que o levaram a cometer tal crime?”, “o que ele desejava?” etc. E não demorou também para se perguntar acerca da razão do criminoso, e consequentemente, acerca de sua loucura: “teria ele cometido tal crime em sua razão, ou estivera ele fora de si?”. É o que Foucault chama de “sansão normalizadora”: quando a distinção normal-patológico é introduzida no direito, o que muito provavelmente dera origem à psicologia jurídica – podemos falar também da psiquiatria forense que vai discutir a imputabilidade ou inimputabilidade de um indivíduo num processo.
O que se passa no filme é um esforço da ciência no sentido de uma patologização da violência e da crueldade; falar-se-á que a violência – o crime – é algo de intrínseco às naturezas más, enquanto nas naturezas boas, esse elemento está ausente. A conversa entre a médica e Alex, no quarto do hospital, nos mostra precisamente isso. Segundo a médica, Alex está doente e precisa ser curado, o que ele faz não é algo que alguém em sua razão faria. É anormal ser violento e cruel. Se se comete terribilidades, então, se está doente. Normal é ser bom, digo, não ser violento, não ser cruel, não ser um devasso, um libertino, um inescrupuloso. Assistimos ao absurdo científico da patologização de algo que nada mais é do que a expressão de instintos humanos – instintos humanos que, enquanto tais, não nascem de uma doença, mas do próprio homem enquanto criatura sã. Só com o advento do cristianismo é que a violência, a crueldade – a guerra também – tornou-se algo abominável. Defende-se a paz, o tipo homem domesticado – separado daquilo que ele pode, considerando a potência da crueldade e da violência, que também podem ser ativas, afirmadoras -, é o “cristão”, o “asceta”. Qual foi o resultado do tratamento de Alex? Foi isso: tornaram-no um cristão. A solução para o niilismo – a violência pela violência – é nada mais, nada menos, que uma dose a mais de niilismo: tornando o homem cristão salvaremos a humanidade, a tornaremos “melhor”.
Mas por que dizemos que Alex tornou-se cristão? Ora, Nietzsche o diz muito bem, em seu belíssimo O Anticristo; a verdadeira “boa nova” que Cristo trazia não era de modo algum aquilo que podemos encontrar em Paulo. Paulo foi aquele que com ódio e gênio distorceu a verdadeira palavra de Cristo. Cristo trazia o niilismo passivo, aquele niilismo que nos acomete quando não há mais vontade, um nada-de-vontade; não mais uma vontade-de-nada, que ainda era uma vontade, mas o puro e simples vazio – o niilismo. Cristo não se rebelou, não opôs resistência aos seus algozes… Ensinou-nos que devíamos dar a outra face. Cristo era budista, não cristão. Ele trazia aquilo que o budismo já havia conquistado, pacificamente, gloriosamente, no oriente. Uma ausência total de querer, um toedium vitae – rejeita-se até mesmo o desejo de aniquilamento, o desejo de morte. Cansado demais para morrer, o niilista passivo abdica até da morte. Extinguir-se passivamente é o que ensina Cristo. E Alex não tornara-se precisamente um Cristo de nosso tempo? Alex não resiste. Faz tudo o que seus inimigos lhe impõem. Lambe o sapato do seu algoz no teatro, foge do mendigo que o reconheceu na ponte, e no final, salta pela janela para “zerar-se”, para dar cabo de sua própria vida, na ânsia de “sumir deste mundo perverso e cruel”.
Sumir deste mundo perverso e cruel é a grande e preciosa verdade de Alex. Era ela sua descoberta mais importante. Ele jamais poderia viver neste mundo. Lhe sucederia o mesmo que sucedera com Cristo em sua época: crucificado. E também a grandiosa e perfeita hipocrisia se revela: querem acabar com a violência, mas não cessam de a produzi-la e reproduzi-la; com alegria, com doce alegria! Eles querem que um homem bom – supondo que esse homem exista ou existiu, e o que é mais importante, que seja desejável – sobreviva em uma sociedade que em seu cerne é perversa. Seu destino não será outro senão o de ser instrumentalizado, violentado, assassinado, pela sociedade. A reintegração é um mito, não por que o criminoso seja “incurável”, mas por que a sociedade mesma está doente. Não há homens bons em uma sociedade que produz, precisamente, o oposto – que precisa produzir. Uma alma cristã como a dele – dar a outra face, não opor resistência aos seus algozes, o verdadeiro e único cristão -, lhe custará a própria vida; tornar-se-á insuportável viver. Não há espaço para ovelhas numa sociedade de lobos. O cristão verdadeiro é o cristão impossível. Alex o viveu e o matou. Ao saltar da janela, não foi a si mesmo que matou, mas ao ideário cristão que lhe constituía. O salto de Alex é o simbolismo da morte do cristianismo, o ideal moral do cristianismo. Não há bons cristãos. Há tão-somente cristãos menos ou mais hipócritas. O fracasso de Alex é o fracasso do cristianismo.