Tenho me dedicado, com a lentidão e a prudência que me são indispensáveis – se trabalho demasiado rápido acontece-me o mesmo do que com aqueles que comem assaz rapidamente: engasgo, mordo a língua, meu estomago malogra-se, e caio de cama -, ao estudo da arte impressionista. Foi graças às sugestões e agradáveis conversas que me foi dada a oportunidade de um encontro tão feliz e surpreendente com a pintura. Mas, o que é um encontro? Pode parecer ao leitor que emprego esta palavra em seu sentido ordinário. Contudo, é equivocado pensar assim porque se trata de um rigoroso conceito filosófico. Deleuze (1925-1995) nos explica que muitas vezes um filósofo escolhe uma palavra ordinária para designar algo extraordinário. É o caso desse conceito tão caro à filosofia de Espinosa (1632-1977).
Para Espinosa, a palavra encontro (occursus) quer dizer, rigorosamente, que um corpo está em relação com outro corpo, que um corpo misturou-se com outro corpo produzindo certos efeitos. Um bom encontro, diz-nos Espinosa, ocorre quando o corpo afetante não decompõe a relação composta e complexa do corpo afetado. Por exemplo, quando ingiro cicuta, o corpo da cicuta entra numa relação com meu corpo de modo que sua relação composta e complexa é destruída – eu morro – e isso constitui um mau encontro. E um bom encontro? Quando tomo um remédio para gripe e então sou curado… O que ocorre? Bem… Então, dir-se-á que há encontros de todo o tipo, com vários corpos. Um encontro com um quadro, com uma música, com um filósofo, com uma mulher, com um amigo, com um inimigo, com um algoz etc. Prossigamos.
Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919), Van Gogh (1853-1890), Modigliani (1884-1920) e Cézanne (1836-1906) são os pintores sobre os quais tenho me debruçado atualmente, dada a forma singular pela qual sou afetado por seus quadros. Este último – Cézanne – é considerado pelos críticos de arte, não um impressionista (Modigliani também não se enquadra no gênero impressionismo, mas falarei dele mais tarde), mas um pós-impressionista e o precursor da pintura moderna.
Todavia, uma categorização histórica não convém de todo, pois Cézanne não rejeitou, com seu afastamento, o impressionismo – como Renoir fizera em seu último período artístico, chegando mesmo a falar de um “ódio ao impressionismo”, pois se via como herdeiro dos pintores do século XIII -, pelo contrário, como diz Marcelo Duprat Pereira, houvera “uma absorção, fusão e superação”. Ora, o artista impressionista rompe com a artificialidade, com a teatralidade, da pintura clássica, atrelada aos temas ditos “nobres” (as pinturas mitológicas, históricas etc.) e buscando na trivialidade do quotidiano, mergulhando lá, onde a vida acontece, aquilo que comporia seus quadros. Eles trouxeram à pintura a naturalidade e a espontaneidade. Seria preciso dizer que para Cézanne, tratava-se de distanciar-se do impressionismo, não em razão de um repúdio, como era o caso de Renoir, mas para então “fazer do impressionismo uma arte sólida e durável como a arte dos museus”. Duração! Cézanne já falava daquilo que Bergson falaria posteriormente, não foi preciso esperá-lo.
Foi preciso que eu me abrisse aos encontros com a pintura, para que daí, então, eu pudesse experimentá-la. Uma conversa, uma singela conversa e um filme, um pintor maldito que nem mesmo era um impressionista, mas que os conhecia… Outrora eu olhava para um quadro com a frieza do rebanho não-estético. Perguntava-me sobre o que ele significava, e então chegava à dura e triste conclusão de que ele nada significava. É certo, todavia, que um quadro nada diz nem significa (desprovido de significante tanto quanto de significado), ocorre que ele funciona, que ele “maquina”, que ele delira a realidade, e por isso mesmo a cria. Meu problema era ter chegado a uma conclusão niilista. Agora, com minha sensibilidade dilatada, lanço-me ao deleite das pinturas. Agora elas não mais me parecem objetos mortos, inertes e silenciosos. Agora elas falam, gritam, gemem, movimentam-se. Tornei-me receptivo aos devires da pintura, aos seus afetos e perceptos, para falar à maneira de Deleuze. O que é um quadro? Um acontecimento tornado durável. Um sorriso, um corpo nu, uma paisagem, um trem, um girassol, são todos acontecimentos que a arte busca exprimir e fazer durar (encontramos aqui ressonâncias cézanneanas).
Rio-me, devido à minha antiga torpeza em relação à pintura – eu era, evidentemente, perverso, destrutivo, em relação à pintura, todavia, eu sentia minha injustiça pavorosa, faltava-me, apenas, um momento, uma força, para redimir-me. Mas não digo de mim mesmo que fui tolo, ignorante, talvez até preconceituoso, vulgar etc. Não basta uma vontade, um impulsozinho erudito, para que algo nos toque – não forçamos o gosto pela pintura, antes somos forçados por ela. Se não temos necessidade de sermos tocados, se não somos arrastados para aquilo que desconhecemos, então de nada adianta dar-se uma de erudito, de correr atrás das coisas para então apreendê-las à força de nossa mesquinha vontade erudita. Um pintor não pinta porque quer, por um capricho seu, ele precisa, ele tem necessidade: ele é impelido ou forçado a pintar. Do mesmo modo nós, apreciadores de arte, devemos ser forçados à pintura, à literatura, assim como à filosofia ou à ciência.
É com embriaguês – recordo-me das sensíveis palavras de Nietzsche sobre a necessidade da embriaguês, de como ela abre a via perceptiva do artista – e com amor que experimento os quadros impressionistas, bem como os quadros de Modigliani, gênio que se inscreve num entremeio, numa zona cinzenta entre o impressionismo, o expressionismo e outros gêneros artísticos – é complexo: eu diria que Modigliani fora um pintor desgarrado e que sua pintura marca uma retomada do espírito desbravador, aventuresco do impressionismo; ele era um vagabundo, um nômade, o grande exemplo de que as coisas não se passam na História, mas noutro lugar. Modigliani retorna ao atelier, desliga-se da natureza, mas não para ressuscitar o classicismo, pelo contrário, ele faz algo muito diferente, tanto do impressionismo quanto do classicismo que o impressionismo atacava. É preciso ser visitado pelos gênios, tocado por eles, do contrário, nada acontece, nenhuma intensidade passa. São dos encontros que se fazem os mais alegres agenciamentos, em que se traçam os devires mais imperceptíveis. Mas, o que tanto me encanta na pintura? Ora, é isto: o pensamento. Um quadro pensa. Mas se a filosofia pensa por conceitos e a ciência por funções, a arte pensa por perceptos e afetos, por blocos de sensações. Não é diferente com o romance, com a música, com a poesia, com a escultura etc. Modigliani, quando perguntado sobre o porquê de preferir pintar retratos e nus femininos, respondia, com simplicidade e graça, que eles expressavam “a muda aceitação da vida”. Suportemos todo o peso que esta singela frase carrega consigo.
Que dizer de Renoir? Ah, Renoir, Pierre August Renoir! Deveria eu, como um apreciador do impressionismo, devolver-lhe o ódio ao gênero com outro ódio, talvez ainda mais austero? Com o ódio típico dos críticos do ressentimento? Eu respondo: que tenho eu a ver com ódios? Eu que não levanto bandeiras, não defendo partidos, ideologias e nem tampouco movimentos artísticos? Não sou advogado e não me sinto confortável em tribunais. Prefiro lembrar-me de Renoir pelo seu gênio profundamente alegre e delicado, afirmador de uma vida desprovida de negatividade. Dizia ele: “(…); para mim, um quadro deve ser uma coisa amável, alegre e bonita, sim bonita. Há bastantes coisas aborrecidas na vida, para que nós fabriquemos ainda outras”. Com isso, sepultava toda forma de pessimismo, acreditava o bastante na vida para afastar-lhe os fantasmas do negativo. Um elogio à vida alegre, afirmativa! E seus quadros, leves e luminosos, correspondem, outrossim, à leveza e luminosidade da própria vida.
Devo confessar-lhes que sou impelido à obra de Francis Bacon por uma certa curiosidade extravagante. É seu caráter tão absolutamente enigmático que me fascina. Não o entendo. Ouso tomá-lo, porem fracasso. Como se vê, Bacon é demasiadamente contrastante com os impressionistas. Há, em seus quadros, muita crueldade, malevolência, perversidade, terror e aflição. Olho-os e sinto-me mal, por vezes sou tomado por um certo grau de terror, de angustia. Seus quadros são difíceis, enrijecem os músculos de nosso corpo fervilhando de sensações desagradáveis. Um artista da crueldade! Tal como Artaud fora um teatrólogo da crueldade. Se Renoir pretendia nos fascinar com belos quadros, Bacon pretende aterrorizar-nos com quadros grotescos, monstruosos. Ele é tenebroso, tão tenebroso que impressiona, que ora desperta o nosso nojo, a nossa repulsa, ora a nossa admiração, ou tudo isso ao mesmo tempo. Enfim, tudo o que digo aqui é muito vago. Ainda busco vias de acesso às suas obras. Pergunto-me repetidamente: “Como mergulhar em suas pinturas, isto é, como adentrar em seu universo de criaturas perturbadoras, desarticuladas, esquartejadas, disformes, grotescas?”. Eis uma pergunta para a qual ainda não encontrei uma resposta. Por essa razão, Bacon permanece, para mim, estranho. Vejo-o de longe. Mas persevero em suas pinturas.
Mas há ainda muito trabalho a ser feito, uma longa estrada a ser percorrida pelo estranho país da arte pinturesca. Há ainda muitos quadros a serem visitados. Muitos agenciamentos. Muitas singularidades a serem descobertas. O que me aguarda nas pinturas de Modigliani? De Renoir? Ou, ainda, as terríveis pinturas de Bacon? São questões que me animam profundamente, que me fazem perseverar num tal empreendimento intelectual e de vida. Passei a amá-las – as pinturas -, e como amante quero percorrê-las todas. Grato sou a quem me permitiu esse amor. O presente escrito é isto: um agradecimento, um tributo, amável, artístico, filosófico, insuspeito e febril escrito por um coração transbordante. Haverão ainda outras conversas, assim o espero; outras surpresas, outros sorrisos e olhares. Mas bem, que importa tudo isso agora? O futuro é negro e eu, incrédulo, não aposto em concepções supersticiosas sobre o tempo. Aguardo, apenas. Visitando, aqui e ali, um pintor, um quadro, um movimento… Experimentando, intensamente, tudo aquilo que a arte, como sensação, nos dá.