“Não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras.” (Gilles Deleuze)
Há muitos bajuladores, de modo que a arte do elogio assaz rapidamente se faz arte do embuste. A partir daí já não sabemos mais se acreditamos nos elogios que nos são endereçados ou se os dispensamos. Nelson Rodrigues, por exemplo, não apenas os recusará como também os execrará: “A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem”. Pois como proceder sem cair no disparate do embuste ou da corrupção? A maneira mais honrada de se elogiar um escrito – em especial um escrito de um amigo – talvez seja escrever sobre ele e não apenas repousar naquele ponto, tão mais fastidioso quanto insuportável, em que dizemos apenas e com o sentimento de uma constatação vazia: “é bom”. Faz-se preciso conectar-se ao texto, experimentá-lo em sua grandeza e vertigem, para além de todo juízo simplório. Assim, prestar homenagens a um texto é fazê-lo vivo. Retira-se toda vitalidade de um texto quando não se faz dele o objeto de agenciamentos por vezes insólitos. Eis o verdadeiro elogio: fazer do texto a expressão de uma afirmação, de um gozo, de uma diferença. É esse o sentido profundo deste modesto escrito: o duplo de uma afirmação superior, a saber, a afirmação da vida na obra de arte.
Pouco ou nada se compreenderá do conto Infância I se não tivermos em mente a inspiração proustiana que o atravessa da primeira à última linha. Portanto, faz-se necessário passarmos pelas noções de “duração”, “memória” e “devir”. Tais noções, quando articuladas, remetem a uma “teoria do tempo”, ponto de convergência entre a reflexão literária (feita por sensações) e a reflexão filosófica (feita por conceitos) – veremos isso com um pouco mais de clareza ao examinarmos a relação que Benjamin irá estabelecer entre o filósofo Henri Bergson e o escritor da Reserche. É justamente nesse ponto de convergência que o “pensador filosófico” pode encontrar o “pensador literário” e com ele travar a conversa derradeira em que se decidirá a vida ou a morte do pensamento.
Em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo Walter Benjamin irá restringir a experiência do tempo como durée (duração) ao escritor. Somente o escritor é capaz de produzir suas condições de possibilidade. O escritor, e somente o escritor, está destinado a tal experiência, como o único sujeito adequado a ela. Para Benjamin, o leitor de Matéria e Memória (obra do filósofo Henri Bergson) seria forçado a pensar tal experiência como irrealizável fora de uma artificialidade que só o escritor é capaz de produzir: “’Matéria e Memória’ define o caráter da experiência na ‘durée’ (duração) de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o escritor seria o sujeito adequado de tal experiência” (BENJAMIN, 1994, p. 105). E Benjamin verá na obra de Proust um esforço de produzir uma experiência tal como Bergson a concebia, isto é, como duração. Proust teria posto à prova a o plano bergsoniano. Diz Benjamin, na continuação de sua fala: “Pode-se considerar a obra de Proust, ‘Em Busca do Tempo Perdido’, como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob as condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imaginava, pois cada vez se poderá ter menos esperança de realizá-la por meios naturais” (ibid., p. 105).
Não nos importa saber se a análise benjaminiana a respeito da duração está correta ou incorreta. Importa perceber, com o auxílio do comentário de Benjamin, que tal como o romance proustiano, o conto inscreve-se no plano de realização da experiência como duração. E isso não apenas determina sua singularidade como também nos fornece uma chave de interpretação valiosa. Para Bergson e para Proust é o tempo que é duração, isto é, puro devir. O caráter contínuo do texto fornece-nos a prova de que se trata de uma concepção bergsoniana do tempo que está sendo operada: não há rompimentos, pontos aos quais se chega e dos quais se parte e tampouco uma passagem de um ponto a outro (sucessão que separa). Na duração, que é o “tempo real”, não há uma delimitação entre o passado e o presente que nos permitiria efetuar tal corte abstrato. Compreender-se-á, assim, a razão pela qual às vezes nos confundimos e não sabemos mais se é a criança ou o adulto que narra a história, se estamos no passado no qual se encontra a criança ou no presente no qual se encontra o adulto.
Sobre a duração, afirma Bergson: “(…) é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e que incha avançando” (BERGSON, 2010, p. 19). Trata-se de um fluxo contínuo tal como o fluxo de um rio que com sua soberba violência estoura todas as barragens, rompe com todas as represas (Heráclito, por sua vez, valer-se-á da imagem do rio para explicar o devir). O texto corre, escorre e é preciso acompanhá-lo nesse processo contínuo (o tempo) constituído apenas por velocidades que remetem aos devires que o povoam e o animam.
A exposição sobre o conceito bergsoniano de duração nos obriga agora a adentrar no tema da memória. Primeiro, acreditamos que o que está em jogo no conto é o lugar que a memória ocupa na sua produção, por tratar-se, justamente, de um conto memorialista. Segundo, a exposição do tema da memória contribuirá, outrossim, à compreensão da própria duração, à medida que a duração é, entre outras coisas, memória.
Segundo Deleuze em O que é a filosofia? – obra na qual o filósofo se esforçará em definir o estatuto da obra de arte -, “muitas pessoas pensam que se pode escrever um romance com suas percepções e suas afecções, suas lembranças e seus arquivos (…)” (DELEUZE, 1992, p. 221). Tal pensamento seria a fonte de inúmeros mal-entendidos em relação à arte do romance. Por quê? Acontece que para Deleuze o objetivo da arte é “extrair um bloco de sensações, puros seres de sensações” (DELEUZE, 1992, p. 217). Tal bloco seria um composto de “perceptos” e de “afectos”. Mas o percepto não é a percepção, mas aquilo que se extrai da percepção; e o afecto não é a afecção, mas aquilo que se extrai da afecção e que a obra de arte faz durar (um rosto, um sorriso, uma paisagem, um crime, uma morte etc.). O vivido conta pouco na arte, ou melhor, o artista inspira-se no vivido, mas não pára nele, ultrapassa-o; o intuito do artista é servir-se do vivido para criar esses seres de sensação que são auto-reverentes e independentes; os seres de sensação “valem por si mesmos e excedem qualquer vivido” (DELEUZE, 1992, p. 213). Assim, torna-se necessário perguntar: se o artista não conta sua história individual, não faz o inventário de seus sentimentos ou a narrativa de seus feitos e experiências pessoais (amores, viagens, amizades, decepções, alegrias, festas etc.), qual o lugar da memória na literatura, mais especificamente, no conto Infância I?
É preciso que insistamos um pouco mais em Deleuze. Diz ele, a respeito do monumento[1]: “o ato do monumento não é a memória, mas a fabulação”. E logo em seguida arremata: “não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente” (DELEUZE, 1992, p. 218). O leitor agora pode então perguntar: o que são esses devires-criança do presente? Bergson quiçá possa nos ajudar a esclarecer essa passagem tão enigmática. A duração, ou o “tempo real”, que é indivisível porque não espacializável – como é o caso do tempo do relógio que apenas oculta a duração com um tempo meramente artificial – e que remete à vida “psicológica” ou “interior”, tudo conserva; a duração conserva e reúne em si tanto o passado quanto o presente, que se tornam coextensivos. Diz Bergson, confirmando aquilo que já havíamos, de modo breve, tratado no início deste texto: “(…) a nossa duração não é um instante que substitui outro instante: se assim fosse, não haveria outro coisa senão o presente, não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, nem duração concreta” (BERGSON, 2010, p. 18). O passado, portanto, prolonga-se até o presente, de modo que “a minha memória introduz alguma coisa do passado neste presente” (BERGSON, 2010, p 16). Bergson não parte da concepção tradicional de memória, ele inventa, na verdade, um novo conceito de memória:
“A memória (…), não é a faculdade de classificar recordações numa gaveta ou de as inscrever num registro. Não há registro, não há gaveta, não há sequer, aqui, propriamente uma faculdade, porque uma faculdade age por intermitências, quando quer ou quando pode, ao passo que o amontoar-se do passado sobre o passado prossegue sem tréguas. Na realidade, o passado conserva-se por si próprio, automaticamente. Acompanha-nos, sem dúvida, por inteiro, a cada instante: aquilo que sentimos, pensamos e quisemos desde a nossa primeira infância ali está, inclinado sobre o presente que se lhe vai juntar, fazendo pressão sobre a porta da consciência, que pretenderia deixá-lo lá fora.” (BERGSON, 2010, p. 19).
Ora, isso que a memória introduz do passado no presente não seria, precisamente, o que constitui os blocos de infância aos quais Deleuze refere-se e que define, precisamente, aquilo pelo que o escritor memorialista escreve? Devemos considerar, ainda, a inspiração profundamente bergsoniana que anima o texto do filósofo francês: a obra de arte como algo que dura ou que faz algo durar. O conto parece, de fato, respaldar em seu corpus tal inspiração bergsoniana, sobretudo no seguinte trecho: “São lembranças hoje tão vivas que, por súbitos instantes, me aterro na poltrona e o gotejar da chuva parece não mais existir”. A vivacidade dessas lembranças não advém do fato de elas terem impregnado de tal modo o presente que dele não se distinguem? E não pára por aí, mais adiante, o escritor conclui: “Não queria eu despertar dessas tão doces divagações sobre isso que é o meu passado, em verdade, tão presente”.
Não se pode afirmar o caráter conclusivo desses trechos, isso seria, no mínimo, imprudente. Mas acreditamos que eles servem de evidências que garantem à nossa interpretação uma certa consistência que deverá futuramente ser posta a prova.
Ainda sobre a memória, devemos retornar a algo apenas aludido anteriormente; a saber: a noção de fabulação que aqui servirá como pedra de toque. Não se trata apenas de fabulação tomada no seu sentido em certa medida vulgar, mas de uma “fabulação criadora”. Tratar-se-á de não confundir tal fabulação que cria com “uma lembrança mesmo amplificada”, e tampouco “com um fantasma” (DELEUZE, 1992, p. 222). A lembrança é ainda da ordem do vivido e o artista, como vimos, excede tanto as percepções quanto as afecções que compõem esse vivido, para daí alcançar a sensação, o percepto e o afecto que compõem a sensação. Poderíamos lançar a hipótese perigosa – e por isso mesmo mais interessante – de que a memória, junto com a sintaxe (que é o material do escritor), seria o material que entra na sensação, isto é, que se deixa absorver por ela. O jardim, universo mitológico magistral que o autor constrói com delicadeza e finesse, ou mesmo a sala amarela de jantar, tanto melancólica quanto viva, é feito de palavras, ou seja, é o movimento mesmo da sintaxe (o estilo). Importa pouco buscarmos sua referência factícia, ainda que se trate de memórias e, portanto, de um jardim que de fato existiu ou existe, de brincadeiras que de fato aconteceram e paixões de infante que de fato foram vividas, o que realmente importa é apreendermos cada passagem no seu caráter fabuloso, ou seja, criador de mundo.
Se se trata de afirmar o caráter criador da fabulação, é apenas para mostrar que a criança que desbrava o jardim de sua casa cria todo um universo, com seus soldadinhos, com suas danças profanas em torno das árvores: é vontade de potência, a força criadora par excellence. O conto busca, precisamente, exprimir o devir-artista da criança que com matéria vinda de toda parte (as pedras, a flores, as árvores etc.) constrói um mundo. É a pura sensação do jardim tornado mundo; ou de um garoto que reconhece pela primeira vez a figura do homem (seu pai), que se torna gigante, grandioso. Não por acaso, dirá Nietzsche acerca da criança, última das três metamorfoses pelas quais passa o homem em direção ao seu próprio ultrapassamento: “a criança é inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, movimento primeiro, uma santa afirmação” (NIETZSCHE, p. 33). E logo em seguida, prossegue assim: “(…) para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação” (ibid., p. 33).
Para “determinar novamente o peso de todas as coisas” (NIETZSCHE, 2003, p. 141), e, portanto para ser artista (criar), faz-se preciso uma enorme violência e crueldade. Criar um mundo é dominar as coisas, tornar-se delas senhor e impor a elas sua “essência”. A criança que desbrava seu próprio jardim (e o pronome possessivo adverte para o caráter senhorial), tal como numa grandiosa epopeia em que heróis disputam a glória dos deuses, na sua santa afirmação, tal como um tirano, determina, justamente, o peso de todas as coisas, isto é, seu sentido e seu valor (toda essência, como se sabe, é arbitrária). Destroem-se os antigos mitos e erigem-se novos: o jardim como uma grande festa pagã, enleado pelo divino que atua para a realização dessa festa que é, apenas, a alegria da criação. Diz o autor do conto: “Tinha eu o hábito de dançar ao redor deles, como em rituais profanos, em busca de ternos risos quem levassem conforto e repouso ao meu espírito altivo e desbravador de meu próprio jardim”.
Por fim, duração, memória e devir são conceitos que juntos traduzem uma experiência literária e filosófica. É essa experiência que quisermos trazer a lume para o leitor. O leitor dispõe, portanto, de elementos a partir dos quais pode situar-se no texto, atravessá-lo, viajar por seus interstícios e cavernas. Não que pretendêssemos, com isso, impor ao leitor o caminho que julgamos verdadeiro – a verdadeira leitura, a essência por detrás do texto, o sentido último e imutável etc. -, como que, evocando Foucault, ressuscitando a “função-autor”, mas tornar o texto compreensível, em outras palavras, munir o leitor com chaves interpretativas que tornam o autor minimamente compreensível. No fundo, tratou-se de chacoalhar o texto para fazer emergir os problemas filosóficos que ele mobiliza e dos quais ele retira sua potência de afirmação.
Referências Bibliográficas:
ALEXANDRE, T. Infância I. Disponível em: http://tarik993.wordpress.com/2012/10/25/infancia-i/
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. Auswahl in Drei Baenden. São Paulo: Brasiliense, 1994, 3ª edição.
BERGSON, H. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: UNESP, 2010.
DELEUZE, G. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2ª edição.
___________, _. A gaia ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003, 2ª edição.
[1] Para Deleuze, o monumento não está ligado ao passado, ele não é, em suas próprias palavras, “o que comemora um passado”, mas um bloco de sensações presentes que encontram em si mesmas sua própria referência ou conservação. Portanto, não se deve remeter os blocos de sensações a uma passado, qualquer que seja esse passado; deve-se remetê-los ao acontecimento, que é sempre presente. O monumento é, na verdade, a celebração desse acontecimento sempre presente.