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Assim, pois, a questão: 

 

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que juguei que senti.

Releio e digo: “fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu. (Fernando Pessoa)

      A crítica mordaz de Nietzsche à noção de sujeito como substratum da ação (sujeito da vontade) e do pensamento (o cogito ou o Eu transcendental), bem como de sua suposta unidade ontológica, é conhecida de todos os círculos de estudos nietzscheanos mundo à fora. Disso conclui-se que a abordagem desse momento da filosofia nietzschiana é já um lugar comum, fornecendo àqueles que desejam introduzir-se no seu pensamento, para falar à maneira dos pintores, um motivo. Há um consenso de que se trata, neste caso, de uma questão capital para o filósofo alemão, não apenas pela própTria natureza controversa da ideia de sujeito, mas também porque ela insere-se no plano mais geral de uma crítica à causalidade e à linguagem como imagem imóvel do mundo. Todavia, neste trabalho de verve explicitamente ensaística[1], ousaremos algo diferente; a saber: valendo-nos de certas passagens, procuraremos prefigurar o que chamaríamos, grosso modo, de uma análise de “filosofia comparada”, erigindo como termos de comparação a crítica de Nietzsche ao sujeito e a crítica de Bergson à inteligência, cujas similaridades buscaremos destacar do quadro geral de suas respectivas filosofias.

      Não aspiramos, ao cabo deste ensaio, aventar a hipótese de que Bergson teria lido Nietzsche, inspirando-se nele para, então, elaborar seu pensamento. Que Nietzsche tenha sido, parcial ou integralmente, direta ou indiretamente, a causa da preocupação bergsoniana em reavaliar o papel da inteligência no seio da epistemologia, não é para nós uma questão. Nosso propósito não é o de iluminar, como o aventureiro que, caminhando às escuras em busca de uma relíquia, direciona a luz de seu lampião para uma região que julga ocultar-lhe algum segredo, um rincão escuro da história da filosofia ao qual outrora não se teria dado a devida atenção. Portanto, não se discutirá aqui se há ou não uma dívida de Bergson para com Nietzsche.

      Falemos, pois, de ressonância ou eco – dispersão em fragmentos ou peças disparatadas que se comunicam à distância, muito antes de uma convergência de linhas heterogêneas (multiplicidade concreta ou devir real) numa totalidade histórica fabricada artificialmente, uma artimanha da nossa inteligência que, inequivocamente, presta bom serviço às exigências da lógica e da linguagem, mas que nos afasta vertiginosamente da natureza da vida. Se se tratasse do segundo caso, incorreríamos nos mesmos equívocos que nossos dois autores irão identificar na metafísica (ontologia) e na ciência (epistemologia). Por isso, a noção de ressonância, tomada de empréstimo da acústica, nos dá a vantagem da precisão e da inteligibilidade do movimento geral que nos empurra. 

Hipotheses fingo:

      No aforismo §260 dos escritos póstumos, reunidos sob o título de Vontade de potência (2011), ao abordar a epistemologia sob o prisma do conceito de vontade de potência, Nietzsche investe contra o Eu cartesiano. Ele põe em xeque o valor de verdade da proposição cogito, ergo sum à qual Descartes teria chego como a uma certeza absoluta. O estatuto demonstrativo do cogito cartesiano é, para Nietzsche, não o resultado de um percurso metódico (a jornada cética da dúvida radical), mas a trilha ao fim da qual ter-se-ia o fortalecimento de uma crença na verdade do que se procurou demonstrar. O que Descartes toma como certeza demonstrativa nada mais é, segundo Nietzsche, do que um artigo de fé (NIETZSCHE, 2011, 339).

      Descartes, para chegar ao cogito, teria se valido de um postulado que não foi submetido ao crivo da dúvida hiperbólica. Ao contrário, fora assumido implicitamente pelo filósofo das meditações. Mas, qual pressuposto seria esse, afinal? O de que o pensamento sustenta atrás de si o peso diretivo de uma intencionalidade: um “Eu” como causa dos pensamentos, como motor dos processos mentais. Descartes em momento algum teria posto em dúvida que aquilo que pensa é uma substância. Mas sejamos polêmicos, como Nietzsche: e se não houver essa substância à qual damos o nome de “Eu”? E se pensar significar outra coisa?

      Para Nietzsche, “afirmar que, quando se pensa, é indispensável existir ‘algo que pensa’ é simplesmente a articulação de um hábito que liga à ação um autor” (idem, ibidem, p 339). O hábito é uma operação por meio da qual pressupõe-se que: a) necessariamente há algo que serve como causa à ação; b) deve passar-se a mesma coisa no interior do espírito. O mundo interior deve refletir, como um espelho, o mundo exterior, e disso segue-se a ilusão de uma substância que ordena, esquematiza, logiciza, sob a forma do cogito, os pensamentos, mas também a vontade, o desejo etc. Ora, podemos perfeitamente indagar onde estaria o caráter demonstrativo da ideia de uma unidade ontológica do Eu. Faz-se preciso contestar o poder regulador dado ao cogito sobre o que se passa no palco da nossa alma. O hábito de estabelecer relações causais no espírito falseia a experiência interior, traduzindo-a em termos que lhe seriam exteriores (as relações de causa e efeito do mundo fenomênico), estabelecendo contra a “complexidade múltipla” (NIETZSCHE, 2011, p. 342) dos processos mentais a simplicidade una e indivisível de uma causa imaginária, como afirma Nietzsche no aforismo § 261:

“Mantenho também a fenomenalidade do mundo interior: o que se nos torna sensível na consciência foi antes preparado, simplificado, esquematizado, interpretado, o verdadeiro processo da ‘percepção interior’, encadeamento das causas entre os pensamentos, os sentimentos, os desejos, entre o sujeito e o objeto, é-nos inteiramente oculto – e talvez nos sejam simples casos de imaginação.” (idem, ibidem, p. 339)

      Em lugar de uma metafísica cuja imagem do pensamento consiste em elevar o Eu à opacidade atômica de um princípio transcendente ou transcendental, Nietzsche oferece sua interpretação acerca da natureza da alma. Nessa nova interpretação, o filósofo define a alma como uma multiplicidade efervescente, diferença de si para consigo. Em Além do bem e do mal, Nietzsche pensará o corpo como uma “habitação de muitas almas” (NIETZSCHE, 2001, p. 28), e não como uma substância (partícipe da extensão) que seria dirigida por outra substância de ordem superior – um ser, ou, “’o espírito’, ‘a alma’, algo que sente, que pensa, que quer” (NIETZSCHE, 2011, p. 342). A alma descobre-se plural. O mundo interior perde sua opacidade e adquire, por assim dizer, uma vasta gama de tons e cores. A suposta simplicidade e imobilidade com a qual pintávamos nosso mundo interior, nossa consciência, e cuja finalidade é apenas a de satisfazer “a necessidade […] de compreender, de resumir, de esquematizar em proveito da inteligência e do cálculo” (NIETZSCHE, 2011, p. 349), dissolve-se numa paisagem múltipla e móvel, vivamente composta. Dela emerge um mundo dionisíaco, rico em impulsos e vontades, toda uma oligarquia anímica. Dizer que somos bipolares ainda é pouco, somos, isto sim, esquizofrênicos![2]

      E se há de falar numa alma múltipla, há de se falar também numa vontade igualmente múltipla. O jogo da vontade estabelece relações de obediência e de submissão entre os impulsos ou instintos. Sob o jugo das vontades dominantes estão as vontades dominadas que não foram capazes de afirmar a si mesmas, de modo que tiveram de servir às vontades superiores. Aquilo sobre o que a vontade exerce seu domínio não é um objeto exterior – sequer há aqui objeto propriamente -, mas também vontade – donde resulta o pluralismo da alma. Dir-se-á que a alma quer, sim, mas esse querer aponta para direções desalinhadas. A alma padece de uma espécie muito particular de “anarquia interna”; descentralizada, estilhaça-se numa miríade de vontades, cada uma delas agarrada às suas próprias ambições e caprichos. O querer não constitui uma unidade que apontaria para um único e mesmo objetivo, mas esparrama-se por uma estrutura complexa de várias almas concorrendo entre si numa luta incessante pelo domínio uma das outras; o corpo é um campo de batalha:

“Em todo querer se trata simplesmente de mandar e de obedecer dentro de uma estrutura coletiva complexa, constituída, como já disse, por “muitas almas”. Portanto o filósofo deveria considerar o querer a partir do ângulo da moral, a moral como conceito de uma ciência dominante. Donde brota o fenômeno da vida.” (NIETZSCHE, 2001, p. 29)

      Nos termos de uma ontologia, não existe um Eu nuclear, o que a filosofia – dir-se-á também a teologia – chamou de “ser”, “alma”, “substância”, “espírito” ou “essência”, segundo o diagnóstico nietzschiano, trata-se tão-somente de “um arranjo artificial para facilitar a compreensão” (NIETZSCHE, 201, p. 340). Essas categorias, tão caras à metafísica, nascem do erro de superestimar a consciência, dotando-a de poderes os quais, em realidade, ela não possui. Mas também de toma-la equivocadamente como causa de todo fenômeno interno que esboce alguma finalidade, sistematicidade ou organização (NIETZSCHE, 2011, p.342). Além disso, o propósito desse arranjo artificial não é o de conhecer. Para Nietzsche, compreender adquire um sentido deveras específico, do compreender não se chega ao conhecimento, à verdade, mas à uma identificação simplificadora de ordem puramente linguística: “’Compreender’ é simplesmente poder expressar qualquer coisa de novo, na linguagem de algo antigo, de conhecido” (NIETZSCHE, 2011, p. 244). Portanto, a nossa consciência responde, em absoluto, à uma finalidade prática e social, e não intelectual. O homem precisa comunicar-se com seu semelhante de uma forma inteligível, e para isso ele submete tudo o que é novo, inabitual ou irrepetível nos fenômenos à clausura identitária de um conceito, de uma palavra. Se eu digo “copo”, e meu interlocutor diz “copo”, ambos precisam supor que a referência do significante “copo” é exatamente a mesma, de modo que se abstrai do objeto, seja ele qual for, sua diferença irredutível, sua singularidade. Se meu interlocutor entendesse por “copo” outra coisa que não aquilo que eu compreendo como tal, não se estenderia entre eu e ele a ponte da comunicação. A sociedade humana decompor-se-ia, tal como ocorrera com Babel. Dir-se-á o mesmo a respeito dos nossos sentimentos ou necessidades, como o medo, a fome etc.

      O colapso nervoso responsável por interromper abruptamente a trajetória filosófica de Nietzsche data de 1890. Bergson publicara Evolução criadora em 1907, dezessete anos depois do colapso e sete anos depois da morte de Nietzsche. À época dessa publicação, Bergson contava já com 48 anos de idade e uma consagrada carreira filosofia, tendo publicado outros livros de notoriedade, como Matéria e memória de 1896. Como se percebe, Nietzsche e Bergson foram contemporâneos. Mas qual o sentido preciso dessa palavra? Tratar-se-ia de uma contemporaneidade meramente histórica? Certamente não! Aqui, esses dois filósofos são contemporâneos na medida em que abordam, cada um à sua maneira, os mesmos problemas. No que diz respeito à crítica do Eu substancial, Bergson tem coisas interessantes a dizer, e tais coisas aproximam-no, deveras, de Nietzsche. Vejamos como.

      Em seu livro A evolução criadora, Bergson abre o primeiro capítulo, cujo objetivo consiste numa crítica ao evolucionismo de Spencer, com uma retrospectiva de suas ideias anteriores acerca da vida psicológica, passando em revista o que são nossos estados interiores à luz da duração. Quando examinamos a passagem de um estado interior a outro (alegria e tristeza, por exemplo), imaginamos construir-se diante de nossos olhos uma série de estados idênticos a si mesmos justapondo-se, de modo que quando um estado aparece, o outro desaparece e assim por diante. Nossa vida interior seria uma espécie de sucessão onde “falo de cada um dos meus estados como se ele constituísse um bloco” (BERGSON, 2010, p. 15). Essa maneira de falar, para Bergson, baseia-se no fato de que concebo a vida interior excluindo dela o tempo real, a duração. Acreditamos que a mudança consiste tão-somente nessa justaposição de elementos atômicos, numa passagem de um estado a outro, mas “a verdade é que estamos mudando sem cessar e que o próprio estado já é mudança” (idem, ibidem, p. 16). Apenas assim pode haver verdadeiramente duração, estados justapostos não duram, porque mantém-se iguais a si mesmos; e onde não há mudança, não pode haver duração (idem, ibidem, p. 16). Mas se restituímos ao espírito a duração que é o seu verdadeiro movimento, então percebemos que na verdade não há estados justapostos, mas uma continuidade una e indivisível, um puro fluxo. Conclusão inevitável: o que existe é apenas um único estado que não cessa de variar ele próprio; ele é essa variação, porque dura. A divisão, então, ocorre “quando a variação se torna tão considerável que se impõe à nossa atenção, a falar como se um novo estado se tivesse vindo justapor ao anterior” (ibidem, idem, p.17).

      E aqui entramos no problema do Eu. Uma vez que desagregamos o espírito em blocos independentes, devido à aparente descontinuidade da vida psicológica na qual a nossa atenção nos faz acreditar que é real, tem-se a necessidade de “reuni-los em seguida por meio de um laço artificial, imaginando assim um eu amorfo, indiferente, imutável, sobre o qual desfilariam e se enfileirariam os estados psicológicos que ele erigiu em entidades independentes.” (idem, ibidem, p. 17). O Eu como substrato dos processos mentais não possui existência ontológica, “é, para a nossa consciência, um simples sinal destinado a recordar-lhe o caráter artificial da operação por meio da qual a atenção justapõe um estado a outro estado” (idem, ibidem, p. 17). Em outras palavras, o Eu nada mais seria do que uma construção artificial chamada a resolver os problemas nascentes de um equívoco de base: supor que nossa vida psicológica é descontínua, quando “o que existe é o fluir de uma continuidade” (idem, ibidem, p. 17). Mesmo o Eu como mecanismo de síntese não serve à Bergson, o que, aliás, o distancia de Kant e da sua ideia de um eu transcendental:

“Se nossa existência fosse constituída por estados separados cuja síntese teria de ser feita por um ‘eu’ impassível, não existiria para nós duração. Porque um eu que não muda não dura, e um estado psicológico que permanece idêntico a si próprio, enquanto não é substituído pelo estado seguinte, igualmente não tem duração. Em vão se alinharão esses estados uns ao lado dos outros sobre o ‘eu’ que os suporta, jamais esse colar de sólidos poderá constituir uma duração que flui.” (idem, ibidem, p. 18)

      Não se encontrará aqui a mesma recusa ao cogito como certeza absoluta – e, num certo sentido, também ao Eu transcendental kantiano (o eu como síntese da consciência ou do espírito), para além do debate propriamente nietzscheano -, que identificamos nos escritos de Nietzsche? Com efeito, Nietzsche não considera a duração como aquilo que, uma vez ignorado pela inteligência e pela ciência positiva, permite todos os erros relativos à ideia de um sujeito ontologicamente uno. A duração nem mesmo chega a ser uma questão para Nietzsche, entretanto parece haver uma preocupação comum de apontar para o caráter problemático da noção de sujeito; um desejo de ultrapassar a linha frente à qual a filosofia havia covardemente se detido, por contentar-se em tomar por verdadeiro aquilo que nada mais é do que uma crença (Nietzsche) ou uma falsa representação do espírito (Bergson).

      Mas haveria algum propósito em falsear a vida interior do espírito, por que essa mentira nos é útil? Seria deveras apressado dizer que a consciência apenas oculta a duração, isto é, a natureza contínua, variante e indivisível do espírito, em favor do Ser ou da substância, por um puro e simples capricho ou ignorância da verdade. Para Bergson, a “imitação artificial da vida interior” serve às “exigências da lógica e da linguagem, precisamente porque dela terá sido eliminado o tempo real” (BERGSON, 2010, p. 18). É uma necessidade lógica e linguística que mobiliza a inteligência a falsificar a duração, em traduzi-la em termos de imobilidade e descontinuidade. E não será esse também o diagnóstico de Nietzsche? Diz Nietzsche (2011, p. 350): “A lógica não maneja fórmulas senão correspondentes às coisas estáveis”; e depois, ainda: “O mundo imaginário do sujeito, da substância, da ‘razão’ etc., é necessário: há em nós uma potência ordenadora, simplificadora, que falsifica e separa artificialmente” (idem, ibidem, p. 350). A lógica não dá conta do movimento real, ela só é capaz de compreender – lembremos do significado dado por Nietzsche a essa operação do espírito – o que não muda, o que permanece sempre o mesmo, por isso a exclusão da duração de tudo o que exija raciocínio e pensamento. Mas é a utilidade, a necessidade prática da vida mundana, e não a representação do real, uma correspondência entre sujeito e objeto, que define o papel da inteligência ou da razão no espírito. Falar-se-á, então, de um hábito da inteligência, da lógica e da linguagem de proceder segundo essa determinação utilitária e prática (BERGSON, 2006, p. 23).

      Com isso, Bergson poderá concluir, em Matéria e memória, que

“O que chamamos ordinariamente um fato não é a realidade tal como apareceria a uma intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da prática e às exigências da vida social. A intuição pura, exterior ou interna, é a de uma continuidade indivisa. Nós a fracionamos em elementos justapostos, que correspondem, aqui a palavras distintas, ali a objetos independentes.” (BERGSON, 1999, pp. 213-14)

      As conclusões acerca da duração interior levam Bergson, assim como em Nietzsche o exame da natureza da consciência levará a uma contestação do mundo-verdade como imagem reflexa ou adequada à estrutura da consciência, a uma contestação da imobilidade e descontinuidade do mundo exterior, isto é, da realidade como Ser e não como devir, fluxo ininterrupto: “Toda divisão da matéria em corpos independentes de contornos absolutamente determinados é uma divisão artificial” (idem, ibidem, p. 232). Ou, nas palavras de Nietzsche, já que se trata de mostrar que ambos estão procurando denunciar uma mesma falsificação: “O mundo aparece-nos lógico porque fomos nós quem primeiramente o logicizamos” (NIETZSCHE, 2011, p. 335). A imagem do mundo material pensado como imóvel e fixo, fora do devir, não representa o real, não consiste numa adequação do sujeito ao objeto pela representação verdadeira do segundo pelo primeiro. Bergson e Nietzsche estão, a esse respeito, de pleno acordo:

“Os contornos nítidos que atribuímos a um objeto, e que lhe conferem individualidade, são apenas o desenho de um certo gênero de influência que poderíamos exercer em certo ponto do espaço: […] Suprima-se essa ação e, por consequência, as grandes estradas que ela abre antecipadamente, por meio da percepção, no emaranhado do real, e a indivisibilidade do corpo será reabsorvida na universal interação, que é sem dúvida a própria realidade.” (BERGSON, 2011, p. 26)

     Tentamos mostrar que tanto Nietzsche quanto Bergson teriam empreendido uma crítica ao sujeito do conhecimento por razões similares. Do problema do Eu (psicologia) se vai até o problema do suposto conhecimento da realidade (epistemologia); e não apenas isso, tendo mesmo chegado, cada um à sua maneira, a conclusões também similares: a natureza, não verdadeira, mas puramente utilitária do que até então se chamou de conhecimento – a ciência, todo o aparato lógico-linguístico etc. -; denúncia dos limites da consciência e da inteligência, a falsificação que estas fazem do mundo para submetê-lo aos seus fins práticos. Bergson acredita poder recuperar o mundo, na medida em que propõe que uma nova metafísica e uma ciência digna desse nome devem reintegrar a duração aos seus sistemas, torna-la pensável, para além dos embustes da inteligência que, é certo, continuará fazendo o seu trabalho, mas que agora será um tanto mais modesta, e admitirá que tem necessidade de outras ferramentas para pensar o real em si, e não limitar-se àquela imagem do real que lhe é apenas conveniente, utilitária, e portanto falsa, porque exclui o tempo, isto é, o devir e o movimento – nada mais nietzscheano!

Referência bibliográfica: 

 

BERGSON, H. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Ed. Unespe, 2010.

_________,_. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves.  – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos)

_________,_. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção tópicos)

NIETZSCHE. F. Vontade de potência. Trad. Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2011. (Coleção Textos Filosóficos)

___________,_. Além do bem e do mal: ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Márcio. Curitiba: HEMUS, 2001.

[1] A escolha pelo modelo do ensaio arvora-se nas incertezas que este trabalho acolhe. Gostaríamos, se possível, de traçar algumas linhas gerais, dar alguns apontamentos, consolidar questões que poderiam iluminar o objeto que anima o trabalho, isto é, a possibilidade de se aproximar dois autores como Nietzsche e Bergson que, admitimos, não sabemos ainda se faz ou não sentido. Antes de provar a validade de uma tese, pretendemos algo mais modesto: levantar perguntas que julgamos pertinentes à tarefa proposta, apresentar um plano de pesquisa. Portanto, hipotheses fingo: arrisquemo-nos a afirmar essa possibilidade, ainda que incerta, e tentemos verificar até onde ela é capaz de nos levar; se, ao cabo do processo, nos veremos derrotados, diante de problemas insolúveis ou se se abrirá diante de nós uma nova terra, não sabemos ainda.

[2] É certo, contudo, que o termo esquizofrenia, aqui, não é tomado em seu sentido clínico, mas metafórico e imagético.