Pensando Jogos | Scorn Dasein – H.R. Giger e os mundos absolutamente Outros

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“O homem sublime ou superior vence os monstros, expõe os enigmas, porém ignora o enigma e o monstro que ele próprio é.” (Gilles Deleuze)

 

Scorn é um game episódico de horror e tiro em primeira pessoa (FPS) que está sendo desenvolvido pela Ebb Software e publicado pela Humble Bumble para a plataforma PC/Windows. À primeira vista, tratar-se-ia de mais um game de horror cuja existência dependeria apenas de um efeito de moda. Mas o que chama de fato a atenção para ele é, sem dúvida, sua filosofia de design fortemente inspirada na estética surrealista e fantástica de H. R. Giger. Para quem não sabe, Giger foi um artista plástico suíço responsável pela criação de uma das criaturas mais icônicas da ficção científica moderna; a saber: o xenomorfo dos filmes de Ridley Scott. Embora os principais traços da estética gigeriana sejam o grotesco e o abjeto, a escolha desses elementos, do ponto de vista do game design, não visa causar um efeito de estranhamento despropositado no jogador, por meio da exposição supersaturada de imagens-monstros, como um game de horror tradicional que abusa dos lugares comuns do gênero para impactar o jogador. O grotesco e o abjeto, tanto para Giger quanto para as mentes por trás do game design de Scorn, são um efeito que se produz pela estranheza do encontro com o Outro, o absolutamente diferente, em suma, o não-humano impossível de reconhecimento e identificação. Scorn, tanto em sua proposta quanto na gameplay da versão de demonstração que fora lançada, parece beber da mesma fonte filosófica de Giger.

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Ressonâncias filosóficas: um encontro possível entre Nietzsche e Bergson

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Assim, pois, a questão: 

 

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que juguei que senti.

Releio e digo: “fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu. (Fernando Pessoa)

      A crítica mordaz de Nietzsche à noção de sujeito como substratum da ação (sujeito da vontade) e do pensamento (o cogito ou o Eu transcendental), bem como de sua suposta unidade ontológica, é conhecida de todos os círculos de estudos nietzscheanos mundo à fora. Disso conclui-se que a abordagem desse momento da filosofia nietzschiana é já um lugar comum, fornecendo àqueles que desejam introduzir-se no seu pensamento, para falar à maneira dos pintores, um motivo. Há um consenso de que se trata, neste caso, de uma questão capital para o filósofo alemão, não apenas pela própTria natureza controversa da ideia de sujeito, mas também porque ela insere-se no plano mais geral de uma crítica à causalidade e à linguagem como imagem imóvel do mundo. Todavia, neste trabalho de verve explicitamente ensaística[1], ousaremos algo diferente; a saber: valendo-nos de certas passagens, procuraremos prefigurar o que chamaríamos, grosso modo, de uma análise de “filosofia comparada”, erigindo como termos de comparação a crítica de Nietzsche ao sujeito e a crítica de Bergson à inteligência, cujas similaridades buscaremos destacar do quadro geral de suas respectivas filosofias. Continuar lendo

Jean-Paul Février fala sobre a Filosofia da Diferença e sua irredutibilidade à moda pós-moderna

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Jean-Paul Février fala sobre a Filosofia da Diferença e sua irredutibilidade à moda pós-moderna1

  

Pierre: O senhor buscou sempre enfatizar que suas pesquisas giram em torno de um conceito como o de Diferença, tal como Deleuze, que foi também seu professor e orientador, o concebia. Todavia, alguns críticos vêem no senhor a marca de um desvio: haveria, aí, uma aproximação perigosa entre a filosofia da diferença e o pós-modernismo. A que se deve tal desvio (se é que se trata de um)?  Continuar lendo

Políticas da imanência: o devir-animal contra a máquina antropocêntrica

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Resumo: A partir das incursões da antropologia contemporânea nas cosmologias das sociedades não ocidentais, tornou-se urgente resituar o homem frente o animal. Restituir uma certa positividade e imanência do segundo em relação ao primeiro. Pensar a diferença que os separa e, paradoxalmente, os arrasta um para o outro, não como uma diferença hierárquica ou disjuntiva, mas como outra coisa. Para o breve estudo aqui proposto, ter-se-á em mente que a máquina antropocêntrica procurou relegar ao animal o lugar obtuso da falta. Tratar-se-á, portanto, de problematizar o estatuto negativo dos animais, tentar mostrar que essa negatividade serve às capturas promovidas pela máquina antropocêntrica. Ao mesmo tempo, apresentar-se-á certos esforços de repensar o animal em outros termos que não os da máquina antropocêntrica. 

Palavras-chave: Antropocentrismo; Deleuze; Devir-animal.

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Ecce Homo: esboço de uma análise acerca da função egoística no processo de tornar-se o que se é

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Resumo: A filosofia de Nietzsche revelaria, sob um certo aspecto (o da autogenealogia), a marca indelével do individualismo, tomado como uma certa afirmação egoística de si. Mas, assumindo que isso seja verdade, em que consiste esse egoísmo? Qual o lugar dessa afirmação na filosofia de Nietzsche? A pretensão deste texto é bastante local, e tratará apenas de certos vestígios dessa questão, tendo em vista o procedimento autogenealógico que dá sentido à Ecce Homo.

Palavras-chave: Nietzsche; Egoísmo; Ecce Homo; Autopreservação. 

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Gilles Deleuze: a literalidade conceitual e a metáfora

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Magritte - Isto não é um cachimbo

Ceci n’est pas une pipe (1929, óleo sobre tela) – René Magritte.

      O leitor se espantará se, após uma leitura apressada, dar-se conta de que diversos termos que tendo sido assumidos como metáforas nessa leitura, em realidade, dão testemunho de uma literalidade que nada concede à metáfora – pensa-se, num primeiro momento, que se trataria de um abuso, de uma inverossimilhança do autor. Olhamos para o lado, com suspeita, e nos perguntamos se isso está certo. Obviamente, trata-se de outra coisa, de um conjunto de regras especiais que permitem ao filósofo pensar o outrora impensado (um novo modo de expressão filosófica). Deleuze (1925-1995) insistirá, em momentos muito diversos, que aquilo que ele diz não é, sob circunstância alguma, uma metáfora (é preciso lê-lo ao pé da letra); Deleuze não falará através de metáforas. O que isso significa, afinal? Significa que não se deve tomar um conceito filosófico, com seu rigor, sua lógica e sua realidade próprios, por uma metáfora. É um cuidado, um modo correto de proceder no plano conceitual. Confundir o conceito – e conceito, como bem esclarecido no livro O que é a Filosofia (1991), é aquilo que a filosofia produz enquanto tal1 – com uma metáfora é destruir o próprio conceito, emperrando assim a criação filosófica que é, afinal, a criação conceitual.

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A conversa assimétrica: identidade e diferença

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O Ocidente e os primitivos

      No texto Entre silêncio e diálogo, Clastres mostra que o Ocidente teria, como elemento imanente à sua constituição, “a muito notável intolerância (…) diante de civilizações diferentes, sua incapacidade de reconhecer e aceitar o Outro como tal, sua recusa em deixar subsistir aquilo que não lhe é idêntico” (CLASTRES, 1968, p. 87). Daí o fato dos encontros com os primitivos, sobretudo à época da descoberta do Novo Mundo, terem sido mediados, na sua maioria, pela violência. O que, por sua vez, levará Clastres a descobrir a vizinhança entre Razão e violência. Estranha vizinhança que o humanismo não saberá reconhecer e que irá situar-s bem ali aonde não se olha, onde não se quer olhar: nas sombras da história. Para o antropólogo francês, sem o recurso à violência a Razão jamais teria instaurado seu reino (idem, ibidem, p. 87). Conclui-se, com muita facilidade, que a violência nada mais foi que a condição de possibilidade do domínio da Razão – é preciso quem sabe acrescentar, sob pena de perdermos o essencial: foi também sua força e expressão mais vivaz.

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Sociedade disciplinar: o nascimento da alma moderna e as novas tecnologias de poder sobre o corpo

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Pan-óptico (1791), desenho de Jeremy Bentham, criador do projeto panóptico.

Pan-óptico (1791), desenho de Jeremy Bentham, criador do projeto panóptico.

    Ao apontar o objeto de sua análise historiográfica – a “microfísica do poder punitivo” (FOUCAULT, 2009, pp. 31-32) -, Foucault procura escapar a certos inconvenientes e insuficiências de uma análise histórica refém dos paradigmas marxistas que orientavam o pensamento político até então; a saber: o paradigma da ideologia, de um lado, e o paradigma dos aparelhos de Estado, de outro. O marxismo, por insistir na tradução do fenômeno do poder em termos de uma fantasmagoria ideológica – o que acabaria por converter o campo no qual as relações de poder investem-se e se desinvestem num lugar em que desfilam os simulacros, as falsificações, os velamentos etc. -, teria perdido a própria concretude das relações de poder. Compreende-se tal concretude, é importante frisar, como sendo os investimentos de poder sobre o corpo através de tecnologias específicas e relativamente bem situadas historicamente, segundo as estratégias das quais ele serve-se e cuja consideração garante a inteligibilidade do fenômeno do poder.

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Análise dos projetos teóricos de “Maladie Mentale et Personnalité (1954)” e “Doença Mental e Psicologia (1962)”

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      Trata-se aqui abordar algumas diferenças que marcarão duas etapas teóricas do pensamento foucaultiano. Em 1954, Foucault faz uma análise das psicopatologias em que a personalidade, na sua relação com a doença, aparece como ponto focal (é a personalidade como objeto do saber médico). Já em 1962, o filósofo lança luz àquilo que é a psicologia enquanto saber sobre a personalidade (a personalidade afetada pela doença). Foucault com isso desloca o foco de sua reflexão e marca um período de mudanças indeléveis em seu projeto teórico. Se no texto de 54 a personalidade constituía o objeto de sua pesquisa, como se por ela desvendássemos os mistérios da loucura, agora é a própria psicologia, como pretendente da verdade da doença mental, que se torna um problema. Tentarei mostrar que o texto de 62 é o resultado de uma mudança de perspectiva em relação ao “fato patológico”, à psicologia e suas técnicas de análise, em suma, às abordagens psicológicas tradicionais da doença mental, assim como o “sentido histórico” da doença.

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“Fahrenheit 451”: ensaio sobre uma cartografia dos signos

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Introdução

      Um livro. Ocorre às vezes que um livro permite que nele se adentre por pórticos secretos, insuspeitos, originais, de acordo com um certo rizoma que permite ao livro estabelecer uma relação com o Fora que o atravessa; daí que uma máquina[1] literária pode então agenciar com outra máquina, filosófica ou científica[2]. Em Fahrenheit 451 (1953), Bradbury prepara um plano (no sentido geométrico) para tal agenciamento maquínico. As ressonâncias de sua obra delineiam uma nova imagem do pensamento (ou pensamento sem imagem) e legitima uma intercessão entre ela e a cartografia conceitual do filósofo francês Gilles Deleuze, cuja filosofia tinge este artigo. Segundo Deleuze, a filosofia “deve criar os modos de pensar, toda uma nova concepção do pensar” (DELEUZE, 2006, p. 178), e desta constatação retira-se a necessidade de uma crítica à representação, isto é, à “imagem moral e dogmática do pensamento.” Desse modo, tentar-se-á neste artigo de mostrar como o livro de Bradbury escapa do paradigma representacional do pensamento, arriscando uma outra maneira de pensar, uma outra concepção do que significa pensar.

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